A suspensão corporal é fascinante. Somos suspeitas para falar. Entendemos claramente o motivo pelo qual profissionais do audiovisual queiram inserir a suspensão corporal em seus trabalhos, é uma prática fascinante de fato. Mas acreditamos que chegou a hora de nós termos uma conversa bem sincera, honesta e importante sobre tudo isso.
A nossa plataforma foi criada em 2006 e, um ano antes, T. Angel – a pessoa que criou tudo isso aqui, quando tudo era mato na internet – iniciou a prática com suspensão corporal. Por conta da visibilidade que fomos ganhando e por conta do trabalho paralelo da T. Angel, ao longo desses anos todos recebemos muitos convites de profissionais diversos do audiovisual para inserir a suspensão em seus trabalhos. Fazíamos uma mediação entre profissionais da área da suspensão corporal e do audiovisual e estivemos participando de diversas produções, algumas inclusive memoráveis e sensíveis como o premiado curta metragem Coma em 2011. Mas a verdade é que na grande maioria, principalmente se tratando de grandes produções e corporações, essas e esses profissionais ouvem muito pouco o que temos a dizer antes, durante e depois da realização do trabalho e mostram aquilo que eles sabem que vendem. No caso da suspensão corporal é o sensacionalismo, o choque, o circo de horrores, que fim ao cabo, opera no processo de estigmatização da prática e das pessoas que praticam. E nós perguntamos para vocês: até quando vai ser assim?
Se vocês olharem filmes e séries grandes que usaram a suspensão corporal, diríamos que mais de 90% delas operaram pela lógica do choque, da tortura, do horror, daquilo que é ruim e só. Por mais bem intencionados que algumas pudessem estar, acabaram reforçando estigmas, demonizações e toda sorte de discurso pejorativo e patologizante que nos acompanha o tempo todo. E repetimos: até quando precisa ser assim?
Em Maio de 2019 uma pessoa que trabalha com a equipe de produção de uma série para televisão nos procurou. Explicou muito brevemente sobre o projeto de uma série que teria a suspensão corporal “usada como tortura” (sic). Disse que precisava de mulheres que trabalhariam com um profissional que atuava na área por mais de 10 anos. Finalizava a mensagem dizendo que gostaria de um encontro para saber mais sobre a prática.
O nosso papel, seguindo a linha de trabalho que fazemos desde 2006, foi questionar tudo aquilo que recebemos. E a nossa resposta para ele foi a seguinte:
“Olá, boa noite. Você poderia nos dizer quem seria o profissional que cuidaria da parte da suspensão corporal? Infelizmente, temos alguns profissionais homens no meio com histórico de abuso, violência e assédio sexual e como o objetivo do seu projeto é trabalhar com mulheres suspensas, acredito que seja importante que elas tenham essa segurança de quem vai realizar o procedimento.
Um outro ponto, a suspensão corporal é ainda muito associada com tortura, patologia e/ou aquilo que é ruim. Temos trabalhado duramente para quebrar esses estigmas. E como a tortura estará associado com mulheres ainda, ficamos preocupadas com a abordagem.
Mas de fato diálogos podem ir esclarecendo as nossas questões, afim de que possamos ajudar de alguma forma.
Um abraço e vamos falando”
Nunca obtivemos resposta do produtor. Nenhum tipo de agradecimento pela nossa resposta e nem nada. Se ele se dizia interessado em conversar sobre a prática para entender mais, percebemos que esse interesse não era tão grande assim. E aqui temos um problema, porque explicamos para ele dois pontos críticos: violência sexual na área e estigmatização de uma prática cultural. Tanto uma coisa quanto outra, ignoradas.
Percebemos ao longo de todos esses anos que produtores do audiovisual não gostam muito de serem questionados. A maioria acha que a gente tem a obrigação de aceitar a grande oportunidade e privilégio de estar recebendo convite para estar na televisão. Se nós não quisermos, vinte irão querer, e é real, a gente sabe que é assim que essa máquina funciona. E é claro que a gente só foi aprendendo isso com o tempo e principalmente encontrando muita gente de índole duvidosa, que alega que nós não sabemos interpretar, que nós não estamos entendendo o que aconteceu ou que nós não estamos acostumadas com a mídia. Já ouvimos isso por tempo demais e, sinceramente, estamos vacinadas.
No mais, a suspensão corporal tem uma comunidade brasileira em que a grande maioria das pessoas se conhecem. Além disso, temos um diálogo muito estreito desde sempre com a comunidade Argentina e, na última década, com o restante do mundo. É uma comunidade conectada onde realmente a maioria das pessoas se conhecem, principalmente quem trabalha profissionalmente na área.
Além de ser uma comunidade pequena, existe um histórico, que no Brasil, infelizmente não é inteiro positivo e, na realidade, carrega episódios graves como casos de “profissionais” que assediaram, abusaram, agrediram mulheres. Então, existe entre algumas pessoas da comunidade da suspensão corporal uma espécie de pacto não combinado de proteção e preservação, seja da prática como de seus e suas praticantes.
Falando em praticantes, a suspensão corporal é uma prática extremamente segura, mas que cada pessoa reage de uma determinada forma. Mas de modo geral é um momento de completa e total vulnerabilidade de quem está sendo suspenso. A confiança e a entrega é integral. Algumas pessoas por variados motivos desmaiam durante o processo ou tem oscilação na pressão e precisa de um tempo para se recuperar, precisa de amparo. Nós sabemos disso e nos cuidamos carinhosa e mutuamente durante as jornadas ou jogos como costumamos chamar. Essa parte pouco interessa aos profissionais do audiovisual, porque quebra a lógica do sensacionalismo e do senso comum que faz com que a maioria dessas pessoas cheguem até nós. A maioria busca uma cena para chocar o espectador e só, depois eles vão para o próximo projeto e nós – que somos as pessoas que vivem essa cultura – é que carregamos os pesos dos estigmas. Sabemos que a suspensão dependendo de como é mostrada tem esse poder, mas ela é tão maior que isso. Sério, tão mais profunda.
Agora conhecendo um pouco mais sobre como as coisas funcionam dentro de uma suspensão corporal e de sua respectiva comunidade, eu gostaria que vocês fizessem o exercício de imaginação. Vamos lá, imagine você deixar alguma mulher nas mãos de sujeitos que carregam histórico de abuso, assédio sexual e agressão, sabendo que ela precisa se entregar completamente para ele, num ato de profunda confiança. Você ficaria realmente com o coração tranquilo? Nós não. A nossa preocupação é imensa porque não queremos novas vítimas e acreditamos fortemente no caráter preventivo.
Então, se você é profissional da área do audiovisual tenha responsabilidade e respeito com as culturas que são desconhecidas por você. Pare de ficar reforçando estereótipos e estigmas. Escute verdadeiramente o que temos para dizer, porque inclusive estamos aqui lutando bravamente no enfrentamento do assédio, abuso, importunação sexual e estupro em nossa comunidade seja da modificação corporal como da suspensão. E é dolorido ver todo esse nosso trabalho diário ser ignorado, porque isso o que vocês fazem é uma forma de silenciamento e de perpetuação de violência. E vocês não têm esse direito!
Luz, câmera e ação, gravando… Lá se vão os 5 minutos de fama vocês dizem. Enquanto isso é a nossa cultura, a nossa segurança e as nossas vidas que estão em jogo. Os estigmas duram mais que 5 minutos e impregnam no imaginário coletivo. Nós temos convicção de que existem outros lados possíveis de serem mostrados quando o assunto é suspensão corporal e que, principalmente, não coloque holofote no trabalho de agressores de mulheres. Iluminemos a consciência.