Na sexta-feira, 24 de Agosto foi ao ar na Rede Record o programa Câmera Record, que se propôs investigar a cultura da modificação corporal, com a chamada “os modificados: conheça pessoas que fizeram alterações radicais no próprio corpo”.
O programa que se propõe a ser jornalístico temático e documental, se mostra o tempo todo anacrônico e grosseiro com profundos problemas éticos e políticos. Ultrapassado é o termo, no sentido de algo que já foi gasto ou que deveria ter ficado para trás como um vergonhoso retrato de um modo de se produzir informação. É o mesmo modelo de se produzir jornalismo sobre a temática da modificação corporal que já foi feito nos anos 80 e 90 do século passado. Molde este também explorado durante a primeira década do ano 2000, inclusive pela própria Rede Record de Televisão, inclusive também no programa religioso Fala que eu te escuto, onde suscitavam que pessoas com modificações corporais poderiam estar endemoniadas ou com algum tipo de doença psicológica. Em outras palavras, eles optam o tempo todo em reproduzir um modelo cheio de falhas para tratar de uma temática que visivelmente para eles é um problema.
E que modelo é esse? Bem, eles conseguem um ou um grupo de pessoas da cultura da modificação corporal, registram suas entrevistas e depois cruzam com relatos dos chamados especialistas, obviamente pessoas de fora da comunidade. Quase sempre alguém da psicologia, quase sempre alguém da medicina, quase nunca alguém da antropologia, sociologia ou história. Não que a medicina ou a psicologia seja um problema, muito pelo contrário, mas o uso que tem sido feito dessas áreas por esse veículo também é vergonhoso e precisa ser olhado de modo crítico. Com fins de, sobretudo, patologizar, criminalizar e estigmatizar essas pessoas e práticas de uso do corpo, é assim que eles têm trabalhado arduamente.
Veja, em uma sociedade como a nossa em que se vigora uma lógica burguesa, também anacrônica, obviamente que o discurso que pretende ser dominante – e quase sempre acaba se tornando – é o discurso daquele sujeito que tem a posse de um diploma, por isso o discurso médico e psicopatologizante sobre as modificações corporais é forte. Por mais que eles coloquem no programa uma pessoa ou um grupo de pessoas ligadas com as modificações corporais, o que elas dizem ou o que elas pretendem dizer é quase sempre completamente ignorado, silenciado e mixado para atender os interesses de quem o controle sobre o jogo. Eles não querem nos escutar, embora enfiem um ou quatro de nós em um programa em uma espécie de Circo dos Horrores atualizado. A intenção é clara, explorar as nossas identidades e culturas.
Assim, mais uma vez assistimos um grotesco programa sobre modificações corporais, que na realidade é um desserviço para toda a sociedade. Que sobretudo retira a dignidade de pessoas que vivem uma determinada cultura e reforçam, ao seu estilo já muito próprio e consagrado, o lugar de abjeção daquelas pessoas. O doutor em psicologia Jacob Goldberg da vez – e falamos assim, porque sempre haverá um ou uma – afirma que quem faz modificação corporal:
“É como se você estivesse matando uma parte do seu eu, pra satisfazer, definitivamente, uma mudança sem volta.”
Percebe onde se quer chegar com tudo isso? A intenção é bastante clara e novamente dizendo, nociva. Principalmente quando sabemos que existem políticos e pessoas do Brasil que se debruçam nesse tipo de programa para criar projetos de lei, para apontar o dedo em nossas caras e para repetir em uníssono para que não existamos.
Curiosa e infelizmente falando, participávamos de um grupo de pessoas ligadas com as modificações corporais no momento em que a produtora do programa procurava as pessoas para participar. O lado positivo é que assistimos um coro de pessoas gritando e recusando o convite para participar do programa, justificando o quanto a Rede Record é nociva para a nossa cultura, o quanto ela mente e distorce, o quanto ela colabora com as nossas desumanizações, o quanto ela reforça os preconceitos. Mas nem isso, foi o suficiente para ao menos dessa vez produzirem um material de qualidade ou no mínimo ético. Novamente, eles não nos ouvem.
No dia seguinte da exibição do programa, o dançarino Guilherme Troiano que participou do programa, publica um vídeo contando que foi enganado pela produção, que a proposta era contar o seu dia a dia em dois dias de gravação, o que nunca aconteceu. Você pode assistir o vídeo CLICANDO AQUI e muito importante que se assistam esse depoimento e denúncia, para sabermos o solo que estamos pisando.
A questão que fica é: até quando a Rede Record irá agir dessa forma covarde e desonesta? Talvez a resposta nunca apareça. Por isso, com base no histórico da emissora, recomendamos publicamente para toda e qualquer pessoa ligada com as modificações corporais que não aceitem a participar de nenhum programa, mesmo que a proposta se apresente florida e cheia de boa intenção. O boicote é a melhor resposta para se dar, para toda e qualquer emissora que tente nos desumanizar. Nós não aceitamos mais esse tipo de violência.