“Eu devo confessar que eu não sei exatamente o que é a dignidade humana. Alguém a perde quando se encontra em situação tal, que lhe é impossível tomar um banho todos os dias. Outro pensa que é quando ele é privado de falar uma outra língua que não a sua, diante de autoridades. De uma certa forma, a dignidade humana é associada a um certo conforto físico, de outra forma, a liberdade de expressão e, de uma terceira, talvez também, a de não poder ascender a um companheiro erótico do mesmo sexo. Eu não sei, então, se aquele que é espancado pela polícia perde sua “dignidade humana”. Mas o que eu estou certo é que com o primeiro golpe, que se abate sobre ele, ele é espoliado da CONFIANÇA NO MUNDO, (…) Esta confiança é a certeza que o outro vai me considerar em função de um contrato social escrito ou não; mais especificamente, que ele vai respeitar minha existência física e daí, metafísica.” – Jean Améry (1912-1978)
Em maio escrevemos um texto AQUI denunciando a tortura de um jovem por policiais de Alagoas. Na ocasião fizemos alguns levantamentos estatísticos e permanecemos sem resposta para a nossa pergunta principal: onde está aquele jovem?
Hoje novamente vimos circular no Facebook um novo vídeo de um jovem sendo torturado física e psicologicamente por policiais. Com 1:33 de duração as imagens mostram um jovem com uma mão algemada e com a outra esfregando uma lixa na tatuagem de palhaço que tem na perna. Um revolver é apontado por um policial para o pé do rapaz. Os próprios policiais registram a ação. Um líquido é jogado sobre o ferimento e arde, uma faca é cogitada a ser usada e o tom dos policiais é de um sadismo brutal. O jovem chora, implora para que não atirem e demonstra sinais de dor. Para quais fins filmaram, não sabemos. O que temos certeza é que se trata de mais um retrato da brutalidade policial e de uma violência que endossa o que todos os dados apontam.
O curto vídeo passa dos 35.000 compartilhamentos. Tão assustador quanto a ação policial que ali se mostra é a reação de quem assiste e compartilha dado conteúdo. Em sua maioria somados de um “hahaha” ou do “kkkk”, sinalizando que as pessoas acham engraçado esse tipo de coisa, que convenhamos é tortura. É assustador o quanto estamos nos tornando superficiais ao ponto de assistir um ser humano sendo torturado e violentado e achar graça. Não é humor é dor!
Nada justificativa ações policiais do tipo. Não existe justificativa para se torturar uma pessoa e exibir o vídeo dessa aberração moral como um ganho ou uma espécie deturpada de honraria anacrônica. Nisto, ao que parece, uma parte dos policiais concordam. Uma pesquisa divulgada em julho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indica que 76,1% dos policiais brasileiros responderam ser favoráveis à desmilitarização.
Pensando e recortando aqui especificamente a questão da tatuagem, precisamos entender que não podemos trabalhar com generalizações sobre representações e significados, mesmo com a figura do palhaço. Isso como regra não se aplica como método de julgamento com as próprias mãos, prática esta que condenamos. Nos anos 90 quando visitávamos estúdios de tatuagem era muito comum vermos séries de desenhos com palhaços, as revistas de tatuagem desse período não nos deixam mentir. Ainda hoje nos estúdios mais antigos ainda é possível encontrar alguns pares de desenhos de palhaço. Um de nossos leitores, Pablo, inclusive compartilhou um relato de sua própria marca na pele:
“Fiz essa tattoo de palhaço quando tinha uns 18 anos, hoje estou com 24. Quando fiz não sabia o que significava, pois sempre gostei de palhaços. Mas um tempo depois que fiz, meus parentes começaram a falar que significava matador de policial ou assaltante de bancos… Até teve uma vez que fui parado numa blitz quando estava voltando pra casa. Vieram em 5 policiais e com uma lanterna iluminaram minha tattoo perguntando se eu sabia o que significava, eu respondi que não. Perguntaram em que eu trabalhava, pois além dessa tattoo tenho mais umas 10 pelo corpo e cabeça, respondi que era tatuador e me liberaram na boa… Não é porque eu tenho um palhaço tatuado que sou bandido, isso é pura ignorância. Hoje quando tenho clientes querendo tatuar palhaço, sempre aviso antes pra depois não se arrependerem. Eu não me arrependo da minha e faria de novo, só que agora faria colorido. “
(Pablo, tatuador, Rio Grande do Sul)
Como já dissemos em outros textos, não sabemos se todas as pessoas que carregam tatuagem de palhaço têm relação com o crime. Mas sabemos que existe uma cartilha dos policiais da Bahia, a “Tatuagens: desvendando segredos”, que sugere isso, o que é um erro. Sabemos também que se você for branco e da classe média, ter uma tatuagem de palhaço pode ser menos letal do que para um negro e pobre, basta ver a matéria que escrevemos anteriormente.
A tatuagem de palhaço que o jovem tenta desesperadamente apagar da perna representa pouca coisa. O fato moral é que ali – naquele momento e em todos os compartilhamentos seguidos de risos – aquilo que compreendemos por humanidade acabou. Isso é triste deveras.
1 thoughts on “Quando a tortura alheia vira humor”