Osasco, 31 de Dezembro de 2021.
Escrevo agora em forma de carta, como quem escreve para própria família. Em minhas meditações diárias é assim que entendo a relação que construí com muitas pessoas através do FRRRKguys. O trabalho que acontece aqui, mudou uma chave – para sempre – na minha vida. Abriu novas portas. Abriu novos mundos.
Já contei algumas vezes em diferentes lugares, mas se faz importante registrar aqui uma outra vez mais. O FRRRKguys surgiu em 2006 durante um processo depressivo delicado que foi me tirando a vontade de viver. Um ano antes eu havia perdido um emprego que eu gostava muito e, que para pessoas freaks, na época não era fácil conseguir. Em efeito dominó, precisei trancar uma faculdade que gostava muito por não ter condições de pagar. Precisei ter muitas portas batidas na cara com a busca de emprego, de me recolocar no mercado de trabalho. Precisei ouvir muitas vezes – algumas delas pelos olhares, pelo não dito – sobre o fracasso que eu tinha me tornado e, o que na verdade, era esperado de alguém – freak – como o que eu era.
Então, dentro daquele contexto, o FRRRKguys brotou, e com ele, a vontade de continuar aqui. Ideias, planos, contatos e a sensação da construção da rede esquisita. A possibilidade de se projetar um futuro possível e que, de fato, se materializou. E aqui estamos nós, quinze anos depois… Vivendo graças ao que foi projetado ali atrás num quarto, numa quebrada de mais uma periferia brasileira.
São quinze anos produzindo conteúdo sobre diferentes usos do corpo, provocando e convidando para construção coletiva de uma comunidade (freak) que esteja disposta a não modificar apenas o corpo, mas que também tenha a intenção e o desejo, por meio das modificações corporais, transformar radicalmente o mundo doente que temos. Curá-lo. Remendá-lo. É assim, que num salto que não é apenas um salto, chegamos no Manifesto Freak de 2015.
E aqui estou agora, em 31 de Dezembro de 2021, escrevendo uma carta para família esquisita que foi delicadamente construída ano após ano, desde 2006. Como uma última carta. Não porque iremos nos dissipar no ar ao fim dela, mas porque o fim pode acontecer a qualquer momento. E por isso, arranquei forças do além, para deixar essas palavras agora. Porque o agora é tudo o que tenho (que temos). E eu preciso dizer da importância que vocês têm para mim. E mais…
O FRRRKguys segue sendo uma das formas que ressignifico e encontro vontade de permanecer por aqui. Tenho tentado, buscado, criar novas raízes para sustentar a permanência no plano que estamos e que conhecemos, desde dezembro de 2020. Aqui é uma raiz. Aqui é um encontro.
O ano de 2021 termina hoje e diferentemente de alguns anos anteriores não faremos retrospectiva. Estamos com 619 mil pessoas mortas por COVID-19 no Brasil, 25 pessoas morreram e 92 mil estão fora de suas casas na Bahia… Acabamos de assistir o atentado de Denver, mais um, que nos tirou gente da nossa gente, que nos tirou gente que abriu caminhos para que pudéssemos estar aqui como estamos hoje. Então, me propus a escrever palavras de uma não retrospectiva de 2021.
E como sempre fizemos, provocando e, ao mesmo tempo, convidando para uma prospectiva, para que possamos projetar uma perspectiva adiante que seja minimamente possível. E é, sobretudo por isso, que arrumo forças do além, para escrever como quem faz pedidos para que nosso mundo não esteja perdido.
O próximo ano é bastante decisivo para nós do Brasil. Em especial para as dissidências, como nós. Para quem viver ou sobreviver até lá, teremos eleições e teremos a chance de tentar melhorar e (começar a) mudar alguma coisa. Não é só sobre tirar o homem fascista que senta na cadeira de presidente, é sobre chutar para a latrina da história as ideologias que o colocaram ali.
Não podemos mais continuar nos movendo com as ideias simplistas de que “tudo sempre foi assim mesmo”, que “político é tudo igual” e que “política não se discute”. Não podemos mais minimizar ou naturalizar o fascismo tropical. Não podemos mais ter qualquer tipo de simpatia por políticos que querem a morte de pessoas, como manifestação explícita do necropoder. Não podemos mais achar que não temos responsabilidade (com a nossa comunidade, com a nossa gente). Não podemos mais achar que isso não nos diz respeito. Não podemos mais agir com omissão, indiferença e neutralidade. Ser uma pessoa neutra, no mundo, é uma prerrogativa que simplesmente não existe.
Então, é isso que gostaria de dizer na data de hoje, em nome do FRRRKguys, para vocês, freaks. O ano de 2022 pode nos levar mais fundo no buraco que entramos ou pode nos direcionar para um amanhã possível. Que não vai acontecer de uma hora para outra, é verdade, mas que vai possibilitar que possamos escrever outras histórias e construir novos contextos para um mundo que está completamente quebrado. É assim que se pode adiar o fim do mundo, segundo Krenak.
Que para além de tatuagens caras, implantes tecnológicos de última geração e joias de ouro com pedras preciosas, a nossa comunidade estabeleça consciência de classe. Que possamos aprender com a força das nossas ancestralidades esquisitas sobre resistências e lutas. Que sejamos todes antirracistas, anticapacitistas, anticapitalistas… Que lutemos de verdade contra o sexismo e a violência contra a mulher dentro (e fora da nossa comunidade). Que lutemos contra as LGBTQfobias, etarismo e a gordofobia. Que lutemos contra o genocídio dos povos originários. Que lutemos bravamente para continuarmos aqui enquanto possibilidades éticas, estéticas, místicas e políticas. Que a comunidade freak se amplie, se aplique, se amplifique, se junte, se remonte, se desmonte, se ame e se goze no espectro das infinitas possibilidades do estar aqui.
O ano termina. Que o luto seja sempre verbo.
Cuidemos de nós mutuamente com carinho.
Obrigada por estarem até aqui (comigo, conosco). Agora.
É tudo (e tanto) o que temos.
Transformar.
Transtornar.
Alyssa, presente!
Alicia, presente!
Dano, presente!
Amor,
T. Angel
FRRRKguys