Maternidade e modificações corporais no começo do ano 2000

Katia Marcolino compartilha conosco como foi ter sido mãe e modificada no começo dos anos 2000.

O preconceito e a discriminação são questões sempre muito presentes dentro da comunidade da modificação corporal. Muito tem se debatido e se discutido sobre essa situação e, ainda, muito há de se debater. Afim de colaborarmos com as reflexões sobre os corpos modificados, abordaremos daqui em diante a discriminação contra pessoas com modificações corporais aplicadas à maternidade. Uma especificidade pouco debatida.

Publicaremos nos próximos meses uma série de textos sobre essa pauta em específico. Começaremos a reflexão sobre a maternidade e modificações corporais com um caso que se passou no começo dos anos 2000, com base no relato de Katia Cristina Marcolino, professora e analista de sistemas.

Como dissemos, publicaremos posteriormente textos adicionais abordando a mesma pauta em tempos mais recentes, afim de que possamos analisar e comparar o que mudou (e se mudou algo) em relação ao preconceito e a discriminação com o passar do tempo. De novo, com as especificidades que rondam a maternidade.

Katia fazia parte de um pequeno grupo de pessoas envolvidas com as modificações corporais – para além da tatuagem e do piercing – no começo dos anos 2000. Trabalhou por alguns anos na Escola de Divinos e esteve presente em diversos eventos alternativos da época, como o Mercado Mundo Mix. Estampou diversas publicações nacionais e internacionais que abordavam as modificações corporais e a moda.

Naquele tempo, Katia teve um relacionamento com o body piercer Andre Fernandes. Da relação veio a gravidez e, com ela, veio ao mundo o Iago.

No entanto, ser uma mulher com muitas modificações corporais – inicialmente grávida e depois mãe -, no começo dos anos 2000 não era uma tarefa de todo fácil. E é importante que a gente discuta sobre isso, uma vez que essa especificidade da comunidade da modificação corporal, de fato tem sido pouquíssima debatida.

Abaixo reproduziremos o depoimento de Katia Marcolino na íntegra:

“Ficar grávida no início dos anos 2000 foi um grande desafio. Primeiro porque para a época eu já estava “velha demais” para a primeira gestação aos 33 anos e depois pela avalanche de falta de bom senso e de respeito das pessoas, o que não deve ter mudado muito desde então.
Ainda grávida, ouvir diariamente a pergunta se o bebê ia nascer tatuado, se ia nascer de cabelo colorido sempre com aquele sorrisinho sarcástico era natural para mim, que sempre respondia com uma confirmação e um sorrisinho bem amarelinho de volta.
Tinha gente que tinha a curiosidade de saber se tanta tinta não poderia fazer mal para o feto, ou se eu continuava me tatuando durante a gestação.”

Katia teve que tirar seus piercings porque o obstetra não “conseguia olhar”.

“Meu médico obstetra pediu de imediato que eu retirasse os piercings dos mamilos e do umbigo porque ele não conseguia nem olhar. Tenho um branding em forma de estrela na lateral da barriga e todas as vezes que ia fazer um ultrassom as enfermeiras e médicos  olhavam como se fosse a marca do diabo e dentro da minha barriga estivesse o anticristo, principalmente porque a estrela foi esticando e virou um estrelão.

Finalmente nasceu o Iago, quase um mês antes do previsto, baixo peso, sem nenhum motivo gestacional, estava tudo perfeito, mas aconteceu. No momento do parto, a primeira pergunta do médico ao ver o Iago tão magro foi se eu era fumante, para justificar o baixo peso. Ele não era meu médico obstetra, como foi uma emergência fiz a cesárea com o plantonista. Somente após retirar a placenta que ele começou a acreditar que eu poderia ser “saudável”, mas o que ele suspeitava mesmo era que eu usava drogas isso ficou bem implícito nos questionamentos.  Iago ficou 8 dias na UTI Neonatal e teve alta quando ganhou peso.

Infelizmente, 10 dias depois, em casa Iago teve uma convulsão logo depois de mamar, eu não sabia direito o que era, mas sabia que era grave. Tentei todas as manobras para desobstrução das vias respiratórias sem nenhum sucesso. O pai dele estava a caminho e assim que chegou fomos para o hospital mais próximo desesperados sem entender direito o que estava acontecendo com ele.

Primeiro teste feito pela enfermeira, se ele havia sido vítima de espancamento, André fez curso de enfermagem e identificou o procedimento. Depois suspeitaram de meningite e transferiram para outro hospital. Nesse,  ele ficou 25 dias na UTI, teve mais 2 convulsões, fez todos os exames possíveis e saiu sem diagnóstico assim como entrou, mas os médicos queriam que eu, em algum momento, confirmasse que havia feito uso de drogas durante a gestação ou durante a amamentação. Foram várias entrevistas, vários questionamentos, tive que apresentar exames, laudos para comprovar que eu estava falando a verdade.

O Andre me deixava no hospital as 6 da manhã para amamentar, voltava as 9  da noite para a visita e as 10 íamos para casa, todos os dias. Eu só saia para comer alguma coisa no almoço e voltava. Tentava durante o dia todo tirar leite o suficiente para amamenta-lo durante a madrugada. Fizemos isso por 25 dias, e foi assim, aos poucos, que os médicos perceberam que não éramos bem da forma que eles estavam imaginando e começaram a nos respeitar e nos tratar diferente com o passar dos dias.

Iago teve alta, fez acompanhamento médico alguns anos e nunca mais teve convulsões, mas a falta de bom senso das pessoas continuou.

Recebemos poucas visitas em casa, mas uma superou todas as expectativas, primeiro ela me alertou se eu sabia que era preciso trocar a fralda dele e depois indignada com um sapo de pelúcia que tinha dentro do berço ela me disse para tirar e colocar na minha cama aquilo, muito ofendida. A sorte dela é que sou uma pessoa muito educada e compreensiva e expliquei delicadamente que aquela era minha casa, meu filho e meu sapo.

Passear em shopping com ele era uma aventura, sempre acompanhados de um segurança (do shopping ou da loja)  e sempre respondendo perguntas do tipo: Vocês vão tatuar ele? O que ele fala das suas tatuagens? Vão por piercing nele? E se ele decidir tatuar o corpo todo?”

Iago recebendo desenhos em seu braço pelo tatuador Gu, amigo de Katia e Andre.

Em uma viagem para Minas, um tatuador fez vários desenhos nos braços dele e as pessoas na rua passavam por nós indignadas achando que realmente ele estava tatuado, elas nos olhavam com raiva!

Certa vez, coloquei nele uma peruca colorida dessas bem baratas numa brincadeira e tirei uma foto, postei no Fotolog e pronto!!! Polêmica! Como eu tive a coragem de fazer isso com uma criança! Pintar o cabelo!!! Que agressão!!! Que irresponsabilidade!!! Era coisa para rir de desespero de tão bizarro.

O direito de brincar com o próprio filho era vigiado e punido.

Reunião da escola? Parecia a Santa Inquisição. Mas aprendemos a ter paciência e esperar que com o tempo as pessoas percebessem que somos iguais a todas as famílias, a todos os pais e mães, somos apenas mais coloridos, com mais bom senso e empatia que a maioria.”

O relato de Katia nos coloca diante de diversas violências – inclusive institucionais e tantas vezes nada sutis – que o corpo de uma mulher, mãe e com modificações corporais era submetido no começo dos anos 2000. E, a despeito de todo preconceito e discriminação, hoje Iago é um adolescente de 17 anos, saudável, amado, muito bem criado e que está a finalizar o ensino médio. Katia, por sua vez, segue sendo uma mãe, uma profissional da tecnologia e com as suas modificações corporais.

Como dito acima, na sequência dessa “série” de textos, trataremos a questão da maternidade e modificações corporais em tempos mais recentes. Será que estamos aprendendo a respeitar as identidades e individualidades das pessoas? Veremos.

Emilio Gonzalez e Iago em um momento de descontração e brincadeira.
Nas primeiras suspensões corporais que aconteciam no Brasil, lá estava Iago nos braços de Ivan Caminsk.

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