“Gracias a la vida, que me ha dado tanto
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto
Así yo distingo dicha de quebranto
Los dos materiales que forman mi canto
Y el canto de ustedes que es el mismo canto
Y el canto de todos que es mi propio canto”
Mercedes Sosa
“Jai Sat Chit Anand”
Há menos de dez dias perdíamos o modificador corporal, Remer (1980-2023). No texto de pesar que documentávamos sua partida, escrevemos:
“A parte mais ingrata do nosso trabalho ao longo desses anos todos, tem sido ter que sentar e organizar alguma coisa na cabeça diante de tantas perdas. Precoces, frequentes, constantes… E pior, saber que se não o fazemos, a memória da nossa gente e cultura desaparecem. E é por isso, que mesmo doendo e com fome de silêncio do luto, escrevemos. Até quando for possível…”
E novamente estamos aqui, escrevendo sobre as partidas, sobre os encantamentos da nossa gente. Está ficando difícil, os intervalos são cada vez menores e, como agora, não tivemos opção que não fosse parar, respirar, chorar, ficar em silêncio por alguns dias e depois sentar aqui na frente do computador: parando, respirando, chorando em silêncio, mas escrevendo. Pois a nossa memória precisa ser cuidada com carinho. E dessa vez, infelizmente, é hora de escrever sobre o encantamento de Jorge Peña. Escrevendo lambemos as nossas feridas.
Não vamos nos desculpar pela pessoalidade da escrita. É pessoal. É nossa gente indo embora. São marcas que vão ficando impressas na nossa experiência. É muito pessoal. Não é neutra, nem é imparcial, assim como nosso trabalho tem sido desde 2006, em todos os sentidos.
Na sexta-feira, 17 de Fevereiro de 2023, perdíamos o artista Jorge Peña aos 70 anos de idade. Uruguaio, radicado no Brasil há mais de trinta anos. Embora sua linguagem artística principal fosse a música, nós sabemos o quanto tudo isso era borrado na história dele, por isso nos referimos à ele enquanto artista. Ele foi um artista monstro, no melhor sentido que isso pode significar.
Nascido em 11 de Julho de 1952 em Montevidéu, suas apresentações artísticas escorreram por todo o Brasil e em países como Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Holanda, Suíça, Itália, Costa Rica e Coréia do Sul. Acompanhou grandes nomes da música como Mercedes Sosa (1935-2009) e participou de grupos experimentais como Ñande Ru, Amálgama e Orquestra Mediterrânea com CD e DVD lançados pelo selo SESC. Viveu bastante tempo em São Paulo (capital) e nos últimos anos, por conta da saúde, vivia em Itatiba, interior de São Paulo.
No campo da dança trabalhou com diversas artistas, como Letícia Sekito, Luciana Bortoletto e Marcos Abranches. Na arena da performance também esteve bastante ativo, trabalhando, por exemplo, com Luciano Iritsu e T. Angel no 3° Cielo. Por conta do encontro desse trio, Jorge esteve presente no Palco Arte Corporal da Virada Cultural (2012) e se apresentou em muitas convenções e eventos de modificações corporais ao redor do país.
A cultura da modificação corporal e freak atraia Jorge Peña com muita força. Marcou sua presença, e mais do que isso, foi um grande colaborador da publicação do livro A Modificação Corporal no Brasil – 1980-1990 da T. Angel em 2015. O livro só foi publicado por meio de doações e apoio de amigues.
Jorge Peña era um freak, era um de nós, era o brujo, sem que para isso tivesse o corpo todo modificado: ele tinha um único piercing no lóbulo, presente do Luciano Iritsu. Sua visão holística do mundo era crítica e sensível. Era místico. estético e político na mesma intensidade. Viveu a ditadura civil e militar na América Latina, esteve sempre fora da curva, esteve sempre com as pessoas que também estava nas margens, como nós. Conversávamos muito – com indignação e revolta – sobre os retrocessos e a simpatia hedionda com os regimes ditatoriais crescentes no Brasil desde 2013 e a ascensão de movimentos de extrema-direita ao redor do mundo. Nessas conversas sempre aparecia a figura do Pepe Mujica como um farol para nossas caminhadas. Ele falava com muito orgulho do Pepe. Jorge saiu do Uruguai, mas o Uruguai nunca saiu dele.
Há alguns meses, Jorge enfrentou o retorno de um tumor de próstata, descoberto em 2015. Naquele momento, com muita consciência, decidiu sobre o que queria para o seu corpo e vida e optou por um tratamento alternativo. No entanto, quase uma década depois, mesmo com terapias e métodos alternativos à medicina alopática, Jorge teve o quadro de saúde agravado, principalmente, nos últimos meses.
Autônomo e adoecido, sem conseguir trabalhar, precisou de contribuições de pessoas que foram tocadas por sua arte, terapias e companhia. É assim que é com a maioria de nós e precisamos falar sobre isso, não aqui e nem agora, mas precisamos. É assim que a gente consegue continuar e/ou partir com alguma dignidade, quando chega nossa hora.
Sua companheira, Cris, cuidou dele por 24 horas com todo amor, paciência e sabedoria, quem a conheceu – como nós – sabemos bem disso. Em uma de suas últimas publicações nas redes sociais, ele dizia que estava no melhor hospital que poderia estar: sua casa. A mensagem foi acompanhada de uma foto dele e da Cris.
Jorge Peña deixa um legado sonoro e de afetos. Ele foi um companheiro, pai, irmão, tio, avô e amigo de muitas pessoas ao redor do mundo, principalmente na América Latina. Nós que tivemos o prazer de viver muitas histórias com ele, ficamos aqui com o coração doendo. Todavia, conscientes de que – em algum momento – chega a nossa hora de descansar, que a nossa missão foi cumprida e é preciso transcender o físico. Somos corpos e corpas de passagem. A carne vai, a memória fica viva em nós, em que continua por mais um tempo.
Entre suas citações favoritas tínhamos a “Jai Sat Chit Ananda”, que é a palavra composta em sânscrito que pode ser traduzida de diversas formas, dentre elas, “Consciência de Felicidade Eterna“. Jorge dançou e fez música com sua consciência sobre si e sobre o mundo.
Nossas condolências para todas as pessoas que foram atravessadas por Jorge Peña. Um abraço especial em sua família, que sempre nos recebeu com tanto carinho em sua casa, em especial a Cris.
Descanse na consciência de felicidade eterna, brujo. Descanse na luz e na força do som, Jorge Peña.
A memória do seu abraço longo, forte e vivo seguirá aqui conosco. Obrigada por tudo!
Viva latinoamerica! Viva latinoamerica!
Ps. Ah! Que difícil escrever cada linha dessa, escolher cada imagem…