Foto: reprodução/Polícia Civil GO
Na quarta-feira, 09 de Março, foi noticiada pelo G1 de Goiás, a prisão em flagrante da body piercer Larissa Plaza por suspeita de realização de procedimentos ilegais de modificação corporal, apontada pela matéria, como cirurgias plásticas. O caso tem ganhado grande repercussão na mídia genérica e hegemônica, acirrando o debate entre body mods versus body meds.
Para um estudo sério e reflexão mais aprofundada sobre o assunto, recomendamos a leitura da dissertação de mestrado de 2019, intitulada Body mod e Body med: uma reflexão sobre como xs agentes da body modification entendem as tentativas de criminalização de suas práticas, da pesquisadora e socióloga Cristiane Melo, disponível AQUI.
Seguindo.
Analisando o portfólio de Plaza, em sua conta aberta no Instagram, vimos muitos procedimentos de reconstrução de lóbulo, otoplastia, remoção de queloides, remoção de verrugas, remoção de cicatriz de perfuração de umbigo. De acordo com a polícia civil goiana, Larissa aplica piercing há 14 anos. A delegada responsável pelo caso, Debora Melo, explicou que ela faz “as cirurgias plásticas em Goiânia há pelo menos dois anos” (SIC), desde 2021, de acordo com os documentos encontrados no espaço em que realizava atendimento.
Em matéria do JA 2ª Edição, tivemos acesso à informações importantes, tais quais: a não formação na área da saúde da piercer; o uso ilegal da logo do SUS em sua ficha de anamnese; todo material apreendido que envolvia kits de sutura a anestésicos; nenhum alvará de funcionamento enquanto estúdio; um espaço de atendimento improvisado em casa com muitos problemas segundo a Vigilância Sanitária; a diferença de valor cobrado pela piercer nos procedimentos em comparação com a indústria da cirurgia plástica, a notícia aponta algo em torno de oito vezes menos; foi arbitrada a fiança, mas não houve o pagamento por parte da piercer; nenhuma fala da defesa foi localizada. Todas essas informações ajudam a entender o caso e na construção da narrativa, de como vem sendo chamada, a falsa cirurgiã plástica que era body piercer.
Percebam que estamos apenas trazendo dados divulgados nas matérias e convidando para uma reflexão coletiva. Agora gostaríamos de chamar a atenção para alguns pontos, enquanto ainda exercício de reflexão sobre o que o caso nos oferece de informação, com base nas notícias divulgadas pela mídia genérica e hegemônica. Reflexão sobre o caso em si e o que pode surgir a partir dele.
Poderíamos simplificar tudo dizendo que ela agiu de má fé, não foi cautelosa, que ela foi imprudente, que a prisão é resultado e culpa exclusivamente dela, mas acreditamos que essa simplificação seria desonesta da nossa parte e não funcionaria enquanto exercício de expandir a reflexão. Nosso papel nunca foi, não é e nunca será o de julgar. Acreditamos que é preciso pensar mais, fazer outras perguntas, e não esquecer que tudo tem uma história… Que nem começa e nem termina com ela. Quem será a próxima? Então, o exercício é olhar as informações todas e pensar. Pensar no que aconteceu antes dela, com ela e no que poderá acontecer depois… Exercício. Pensar…
PERSEGUIÇÃO
O primeiro ponto é que a perseguição contra profissionais das modificações corporais não é nova e nem específica do Brasil. Passou pela tatuagem, body piercer e chegando nas outras técnicas chamadas de “extremas”, incluindo a suspensão corporal. Se olharmos as notícias da mídia genérica e hegemônica – construídas e reforçadas pelo saber médico – o tom oscila entre “isto é um crime” e/ou “isto vai te fazer muito mal ou te matar“. Existe uma forte tensão entre essas classes trabalhadoras – área da saúde versus área da modificação do corpo – que envolvem muitas e tantas coisas (leia a dissertação citada acima). Muitas vezes sentimos o peso do julgamento moral em tudo isso. A perseguição até antes de 09/03/2023 tinha um caráter mais de ameaça e agora tudo muda. Nos últimos anos acompanhamos diferentes casos de pessoas que receberam ameaças de processos, algumas delas abandonaram o ofício ou migraram para algo mais seguro (inclusive economicamente falando), como a tatuagem, por exemplo. Existe segurança de fato? Será?
TRAIÇÃO
Há fortes indícios, com base em conversas informais que realizamos ao longo dos anos, de que a maioria dos casos de perseguição partem de denúncias entre pares de ofício, isto é, profissional da modificação corporal que denuncia e/ou expõe profissional da modificação corporal com fins de vigiar, punir e gerar prejuízo. Podemos chamar isso de traição? Que nome podemos dar para essa prática?
Esse fenômeno não é específico no Brasil e não é específico com profissionais com poucos anos de experiência. E quase sempre o tiro sai pela culatra, abrindo precedentes para criminalização, marginalização, estigmatização de um grupo inteiro de pessoas. Ou seja, todo mundo que trabalha com modificação corporal acaba se tornando um, ume ou uma potencial suspeita de exercício ilegal da medicina. O que acontece em seu estúdio quando as portas se fecham? Devem pensar. Podem buscar descobrir.
E o que se ganha? E quem ganha? E o que se pretende ganhar?
E quem perde? E o que se perde?
GÊNERO
Um dia depois do Dia Internacional da Mulher temos a prisão de uma body piercer. Sem a pretensão de encontrarmos respostas fáceis ou únicas, ou dizer que ela foi presa exclusivamente por ser mulher, precisamos considerar a questão de gênero envolvida no caso. Dos tantos casos de ameaças que tivemos conhecimento ao longo dos anos no Brasil, envolviam homens cisgêneros, e nenhum deles culminou em prisão. Em alguns deles, nem quando a denúncia envolvia assédio e abuso sexual. É emblemático que o primeiro caso de prisão consumada envolva uma mulher, considerando o quanto nosso país é sexista e o impacto direto do sexismo na comunidade da modificação corporal. E é importante frisar que, chamar a atenção para essa reflexão, não implica em dizer que gostaríamos que a primeira prisão fosse a de um homem. Nós não gostaríamos de ver prisão alguma acontecendo, considerando as pautas abolicionistas e antipunitivistas que nos movem. Só apontamos o desequilíbrio que há na balança quando olhamos de modo mais amplo para tudo pela perspectiva do gênero.
Existe equilíbrio e equidade de gênero na comunidade da modificação corporal? Quais condições as mulheres profissionais estão? Quais as histórias dessas mulheres nessa comunidade?
CRIMINALIZAÇÃO
O caso pode abrir grandes portas para a sanha punitivista da criminalização da cultura da modificação corporal. É importante não esquecer que quando existe a criminalização de uma prática ou técnica, um grupo de pessoas é afetado. Projetar toda culpa na piercer, no caso da vez, não resolve a situação. Claro que podemos fazer uma discussão mais cirúrgica, e precisamos fazê-la, quando pensamos a relação frágil entre classe, raça, gênero e sistema penal no Brasil, considerando inclusive os estudos sobre encarceramento em massa, todavia, de modo geral, a criminalização gera um impacto em toda a comunidade. A gente viu isso acontecer na França, Inglaterra, Japão e quase aqui no Brasil. Talvez, pós 09/03, não seja tão somente quase mais.
Não esqueçamos que foi na Inglaterra que tivemos um forte e descabido ataque ao piercing genital em vulva em 2015 e a prisão de Brendan McCarthy, sentenciado em março de 2019, cumprindo pena de 3 anos e 4 meses por procedimentos ilegais de modificação do corpo.
Quais os efeitos práticos da criminalização? Criminalizar resolve todos os problemas? As pessoas deixam de fazer determinadas coisas porque são consideradas crimes? Quem de fato acaba na cadeia? O cárcere é a solução ou um fim?
Por fim é isso.
Um convite para pensar.
É uma conversa que não começa nem termina aqui.
Nota: A divulgação do nome e imagem da presa foi autorizada por despacho da Delegada de Polícia que preside o inquérito policial, para possibilitar a identificação de novas vítimas e o surgimento de outros elementos informativos acerca da dinâmica dos fatos criminosos, em consonância com a Lei 13.869 e Portaria 547/2021-PC.
REFERÊNCIA
Body piercer é presa suspeita de fazer cirurgias plásticas ilegalmente em Goiânia
https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2023/03/09/body-piercer-e-presa-suspeita-de-fazer-cirurgias-plasticas-ilegalmente-em-goiania.ghtml
Body piercing é presa suspeita de realizar cirurgias sem licença
https://globoplay.globo.com/v/11434923/
Polícia Civil prende falsa cirurgiã plástica que oferecia serviços pelas redes sociais
https://www.policiacivil.go.gov.br/delegacias/especializadas/policia-civil-prende-falsa-cirurgia-plastica-que-oferecia-servicos-pelas-redes-sociais.html