O ano é 2019 e muitas pessoas ao redor do mundo ainda não entendem as modificações corporais como campos de trabalhos possíveis ou como profissões possíveis. O cronista carioca, João do Rio (1881-1921), no começo do século XX já escrevia sobre a profissão do tatuador, dentro do que ele chamou de pequenas profissões. É verdade que desde lá assistimos uma transformação intensa e profunda em que a tatuagem, por exemplo, se tornou uma indústria que gira muito capital ao redor do mundo.
O campo do body piercing, por sua vez, não é muito diferente. Dentro da forma que se configura hoje, a prática e a profissão são relativamente novas quando comparadas com a tatuagem. No Brasil a profissão de body piercer teve o seu início marcado nos anos 90 e em três décadas teve uma oscilação radical no sentido econômico. Ascensão, queda e agora um tipo de maturidade sólida e a construção de uma indústria forte. Já a sua visibilidade e aceitação social, só seguiu em caminho crescente e também foi um processo radical, em nosso ponto de vista, positivo.
As outras técnicas de modificações corporais como escarificação, implantes, línguas bifurcadas, eyeball tattooing, dentre outras técnicas, ainda caminham com outros passos. Quiçá mais lentos. Dentro do Brasil e fora também não parece ser diferente.
Hoje é possível que profissionais brasileiros das modificações corporais – principalmente no campo da tatuagem e piercing – consigam viajar para outros países e trabalhar em suas áreas. Esse movimento foi muito forte dentro da tatuagem, com diversos e diversas profissionais cruzando oceanos e construindo carreiras fora do Brasil. O piercing tem vivido esse momento com mais força nos últimos anos.
É claro que nem sempre tudo são flores e que as legislações e recepções sobre as modificações corporais são bastante diferentes em determinados países, sendo que em alguns tantos, são enquadradas como práticas criminosas. Conversamos com três profissionais que deixaram o Brasil nos últimos meses para construir suas vidas e carreiras em terras estrangeiras.
As experiências compartilhadas pelas três pessoas nos ajudam pensar sobre a vida lá fora, mas aqui dentro também. Confiram abaixo.
Karine Guimarães – tatuadora
Nome: Karine Guimarães | @kahkilla
Técnicas que trabalha: Trabalho com tatuagem e suspensão corporal
Cidade de origem: Petrópolis, Rio de Janeiro
País que está a viver: No momento estou vivendo como nômade, realizando o sonho de conhecer vários países, e o melhor de tudo, estou deixando a minha arte por onde passo. Na Europa estive tatuando em Portugal, Espanha, Alemanha, França além de ter passado uma longa temporada tatuando no Egito, o que também foi uma experiência única que com certeza mudou pra sempre minha vida!
Quanto tempo fora do Brasil?
Sai do Brasil há apenas 8 meses, apesar da sensação ser de que estou muitos anos fora já.
O que te levou a sair do Brasil?
Eu já tinha vontade de sair do Brasil, sempre tive o sonho de rodar pelo mundo com o meu trabalho e eu estava planejando isso pra daqui alguns anos. Mas o crítico momento político que passamos no final do ano passado, foi como um empurrão pra sair do país o mais breve possível.
Como é a recepção dos corpos modificados onde está a viver?
Bom, dos países por onde passei na Europa achei sempre muito normal viver sendo modificada, olhares sempre acontecem, mas pouquíssimas vezes fui abordada por perguntas diretamente ligadas a modificação corporal. Já no Egito a situação se inverteu por completo, onde a tatuagem ainda está ligada à marginalidade e modificação corporal extrema nem existe. Já na chegada no aeroporto fui abordada de forma diferente por conta das minhas modificações corporais… Policiais me seguiram no aeroporto e fizeram perguntas inconvenientes sobre minha aparência.
Já na rua em relação às pessoas, não tive nenhum grande problema, a não ser em alguns momentos onde me incomodava com os olhares incrédulos do povo. Pior é que nem dá pra dizer “tá olhando o que?” ou “nunca viu não?”, porque eles nunca viram mesmo.
Como é a questão legal das modificações corporais onde está a viver?
No momento estou no Egito, tatuagem aqui se popularizou há cerca de apenas 10 anos! Apesar de ter muita gente que se tatue não existe uma regulamentação pra tatuagem e modificação corporal aqui. Não é proibido, mas também não é legalizado… É tudo muito novo pra eles e ainda não existe uma legislação.
Comparando sua cidade de origem e onde está hoje, em relação as modificações corporais, o que fica mais forte para você?
Comparando o Egito com minha cidade natal, o mais forte é perceber o quanto somos privilegiados de várias maneiras no Brasil e não notamos. Eu cresci pensando que na minha cidade no interior do Rio de Janeiro não chegava informação, que existia preconceito com pessoas tatuadas, depois dessa viagem vi que não… A língua deles é o árabe, então, se você não sabe falar inglês, você vive dentro de uma grande bolha difícil de estourar, onde toda sua educação, cultura e estudos são escritos em árabe o que dificulta muito você ter uma percepção diferente do que te foi ensinado. Há uns dias eu conheci uma menina árabe que me falou que queria ser tatuadora, me fez recordar da minha trajetória, que não foi nada fácil, mas ao comparar com o pouco acesso a estrutura desse país, me fez refletir muito sobre nossos privilégios, ter liberdade e informação escrita em nossa própria língua faz toda a diferença.
Danilo Vilarino – tatuador
Nome: Danilo Vilarino | @danilo_vilarino
Técnicas que trabalha: Tatuagem
Cidade de origem: Belo Horizonte, Minas Gerais
País em que está a viver: França
Quanto tempo fora do Brasil?
Desta vinda 5 meses
O que te levou a sair do Brasil?
Dentre vários motivos, creio que os mais relevantes são: violência, qualidade e/ou praticidade de vida baixa em praticamente todos as áreas; e o mimimi brasileiro no momento em que saí do país estava me adoecendo.
Como é a recepção dos corpos modificados onde está a viver?
Os franceses tem sua cultura muito forte e bem diferente do Brasil, diga-se de passagem. Porém, são bem instruídos sobre diversas coisas: procuram ser bem informados. Comparando a mídia do Brasil com a mídia aberta da França (TV e rádio) vejo uma vasta diferença das mais diversas informações e assuntos abordados e a maneira como falam. Acho que esse detalhe de se manter informado melhora a recepção às modificações corporais. Creio que o choque com as modificações corporais é menor pelo fato de que em algum momento a pessoa já pelo menos ouviu falar. Se tratando de uma pessoa com mais modificações, pode haver uma estranheza maior – ou até mesmo apenas uma curiosidade. Mas a maneira da recepção europeia sendo ela positiva ou negativa é, com toda certeza, mais educada, menos rude ou invasiva.
Como é a questão legal das modificações corporais onde está a viver?
Para todo profissional tatuador, piercer e quem trabalha com maquiagem definitiva precisa fazer um curso chamado Formation d’hygiène et Salubrité – um curso de biossegurança de acordo com as normas do país. O curso tem a duração de três dias e o preço é bem salgado. Ganha-se um certificado ao fim do curso que funciona como uma permissão para esses profissionais atuarem. Pode acontecer do cliente perguntar se você tem esse certificado, e caso seja negativa a resposta ele provavelmente não irá fazer o procedimento com você, por achar que você não trabalha da maneira correta. Outros procedimentos não são legais e acabam funcionando como no Brasil, de maneira clandestina.
Comparando sua cidade de origem e onda está hoje, em relação as modificações corporais, o que fica mais forte para você:
Eu acho que a maneira de saber que sua opinião é sua opinião é um ponto marcante aqui para mim. No Brasil já fui por várias vezes parado na rua para ser importunado por desconhecidos. Com argumentos que vão de curiosos à agressivos. Essa agressividade como reação ao corpo modificado, ou a maneira com que, no Brasil, as pessoas te abordam quase que te obrigando a dar uma explicação, razão ou tentando te impor alguma ideologia religiosa é insuportável no Brasil. Aqui na França eles lidam melhor e com mais respeito com o que é considerado diferente para si. São mais educados e quase nada invasivos, comparado à minha cidade no Brasil.
Luciano Iritsu – body piercer
Nome: Luciano Iritsu | @lucianoiritsu
Técnicas que trabalha: Piercings, scars, suspensão e reconstrução de lóbulo
Cidade de origem: São Paulo, São Paulo
País em que está a viver: Japão
Quanto tempo fora do Brasil: 6 meses
O que te levou a sair do Brasil?
Estava a 13 anos sem voltar para o Japão, queria saber como estava a cena por aqui. Quero conhecer a Ásia. Minha mãe mora aqui a 18 anos e o país me garante qualidade de vida. Juntei tudo isso e vim.
Como é a recepção dos corpos modificados onde está a viver?
O Japão da tecnologia de ponta, onde tudo é facilitado para desenvolver a vida da forma mais prática, tem um lado historicamente retrógrado e preconceituoso. As tatuagens ainda são linkadas com a máfia, Yakusa, a sociedade nos vê assim ainda. Mesmo que exista muita gente tatuada, a maioria são estrangeiros. Agora quanto ao piercing, alguns tatuadores japoneses já me disseram para eu tomar cuidado com o que estava fazendo. Agora quanto as modificações nem se fala, né? Lembrando que ano passado um tatuador japonês ganhou na justiça o direito de tatuar mesmo não sendo um médico, enfim, aquela mesma lei do ato médico que rolou no Brasil a uns anos atrás.
Agora o piercing vive aqui os anos 90, sendo para poucas pessoas ainda. Mas existe uma cena e alguns profissionais que trabalham da melhor forma com o piercing, com as melhores joias e melhores materiais e tive a honra de conhece-los e fazer bons contatos. Existem as festas fechadas de suspensão e outras modificações como a scar… Já estou me sentindo em casa!
Como é a questão legal das modificações corporais onde está a viver?
Totalmente ilegal. O governo não enxerga os estúdios, mas eles existem em um monte de lugar. Aqui todo mundo pode ser preso se fizer alguma cagada mínima, tomo todo cuidado necessário.
Comparando sua cidade de origem e onde está hoje, em relação as modificações corporais, o que fica mais forte para você?
Ah! São Paulo é onde acontece tudo do Brasil, né? Estou a 1 hora de Tóquio, mas a cidade é pequena, e não tem muita informações sobre as modificações. Estamos tentando organizar uma exposição. Bem, como eu disse, já estou me sentindo em casa, e isso me lembra de quando cheguei no Brasil em 2005, não conseguíamos nos conectar e acabou surgindo eventos, como o Conscar, Frrrkguys, Frrrkcon, Virada Cultural.