(Escarificação feita por Jesse Villarreal)
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. ? O que aconteceu comigo? — pensou.”
Kafka em “A Metamorfose”
“Afinal, o inumano, quando assim olhado, teme, sofre, cai, chora, é fruto de um sistema que não o acolhe, é corpo capital, é exemplo de desgraça. Vivencia a dó no olhar, o nojo e desprezo na ação do humano, é excluído pelo olhar e sofre a todo instante uma violência simbólica. O “inumano” atravessa a rua, pode ser vizinho simbolizado, mas passa despercebido aos olhos do soberano príncipe do Estado, humano. Porque esse se convenceu que é soberano e vestido de si. Seria ético repensar o que significa ser humano.”
Eduardo de Campos Garcia em “Ser humano soberano, perigoso e maquiavélico”
Propositalmente escrevo esse texto agora, fim de 2015. Escrever durante os últimos suspiros de um ano, momento em que a maioria das pessoas planeja festas, viagens, encontros… Momento em que muitas pessoas sonham mais livremente, até aquelas que são usualmente privadas de sonhar, têm alguns instantes livres para esse exercício básico e fundamental da humanidade. Então, a minha proposta, nesse momento, é que tenhamos uma conversa clara, limpa, madura e muito sincera sobre a relação entre a instituição familiar e as modificações corporais e todo corpo que escapa da normatividade. Vamos?
Antes de prosseguir, preciso dizer que trazer Kafka na epígrafe também foi proposital, uma vez que em outubro deste ano se celebrou o centenário da obra A Metamorfose. Cem anos se passaram e ao que parece há coisas que tendem a permanência. Há quem se beneficie com essa logica e é sobre isso que buscaremos conversar adiante.
O primeiro ponto que gostaria de trazer – já prevendo as possíveis pedradas que devo receber – é que precisamos repensar e, mais do que isso, temos que desconstruir a família tradicional. Desconstruí-la para que – quem sabe, talvez um dia – possamos reconstruir um outro modelo, para que um dia possamos viver uma outra experiência com essa instituição, que inclusive, não seja violenta. O ponto que trago é que, sim a família tradicional pode ser – e historicamente tem sido – uma instituição violenta e em muitos casos até brutal. Não falo somente de violência física que inegavelmente é também uma realidade, mas também daquela que nos destrói psicologicamente e simbolicamente, pedaço por pedaço. Falo da violência que nos consome feito a águia que devorava Prometeu acorrentado no cume do Cáucaso.
Digo que escrevo propositalmente agora, pelas festividades e celebrações que se aproximam, pelos momentos de revisão e reflexão que chegam juntos com esse período. Penso que são datas como as que se aproximam que as pessoas que constituem as famílias se encontram e, para algumas, isso é motivo de uma verdadeira tortura e horror. Lembro com muita vivacidade que no final do ano passado, enquanto a maioria celebrava e festejava a chegada do novo ano, tinha uma pessoa se queixando que viajou milhas para estar com a família e quando lá chegou, foi destratado ou melhor dizendo, foi tratado como uma aberração e com rejeição por conta das suas modificações corporais. Sua família, aparentemente cristã, dizia que a imagem daquele jovem era a de um demônio. Ele foi fortemente hostilizado e contava suas desventuras com muita tristeza. Doeu em mim.
“E armado com a outra mão com um grande jornal que estava sobre a mesa, preparou-se dando forte patada no solo, esgrimindo papel e bastão, para fazer retroceder até o quarto”.
Kafka em “A Metamorfose”
O caso daquele jovem não era isolado, correto dizer que é um tipo de violência mais comum e frequente do que pensamos e/ou falamos. Tanto é que quando anunciei que escreveria sobre isso e abri aos leitores e leitoras pedindo casos, a maioria dizia que não conseguia falar sobre isso. Algumas eu sei que estavam machucadas demais para falar sobre essas coisas todas, outras eu sei que mesmo muito machucadas, receavam falar e expor a violência vivenciada com sua família, vejo isso como um cuidado e proteção, mas também como medo. No entanto, penso que se não falamos sobre essas situações de extrema injustiça, parece que essa violência não existe ou que ela é maldição de alguns poucos infelizes, quando não. Não são raros os casos em que a família declaradamente rejeita os seus por conta das modificações corporais, que diz sentir nojo do que estão se tornando, que diz terem vergonha e por aí segue. Há casos de violência física, há casos de expulsão de casa também e há casos de pessoas que cansam disso tudo e se suicidam, em suma porque a violência inicia-se de dentro da casa e explode na rua e em todos os demais âmbitos da vida. E passou da hora da gente parar de culpabilizar a vítima pela opressão e violência que sofre, principalmente quando parte de familiares. Temos que aprender a fazer os questionamentos certos, por exemplo, por que uma mãe diz ao filho que ele é a imagem de tudo aquilo que é de pior que pode haver no universo? Por que um pai mata uma filha por conta de um piercing na língua?
(2009: O pai mata a filha por ela tê-lo desobedecido e perfurado a língua)
Quando anunciei que escreveria sobre a relação entre família e modificação corporal, muitas pessoas que sofrem e\ou foram vítimas de violência pelo pai, mãe, ambos ou outra figura familiar, me perguntavam se comigo tinha sido diferente e se eu falaria sobre minha experiência também. Já esperava que isso poderia aparecer e a verdade é que eu tenho falado sobre isso o tempo todo, em toda entrevista que concedo, toda palestra que faço, por que sei que o meu caso não foi isolado e que a minha história – especificamente essa parte – se repete ad infinitum. Além de qualquer vitimismo, sei que a família rejeita sistematicamente as pessoas não normativas ou aquelas que desobedecem as regras sociais estabelecidas (anos atrás se uma garota engravidasse antes do casamento ela se tornava escória e tinha grandes chances de ser expulsa de casa, pessoas LGBTQI são colocadas para fora de casa há tempos, como também há casos de abandono de pessoas com deficiência), só muda o motivo, mas fim ao cabo todos somos um pouco o bicho kafkaniano. A jornalista Daniela Arbex traz no livro Holocausto Brasileiro alguns casos em que pessoas não normativas ou desobedientes eram descartadas, depositadas feito lixo e entregues para a própria sorte no hediondo hospício chamado de Colônia em Barbacena, Minas Gerais.
Embora eu já esteja o fazendo desde o início, aviso que de agora em diante estarei assumidamente cruzando a minha biografia pessoal, com a de outras pessoas (ainda que eu não vá citar nomes), com pesquisas e fontes diversas.
“Eu tive que lutar por isso toda a minha vida , pai. Toda minha vida, estranhos, namoradas, porra, até mesmo meus pais, todos me pedindo para ser algo que não sou. Você tem alguma ideia de como isso é? Como, toda a porra da sua existência estar sendo negada, como: -“Uau, seria melhor se você fosse invisível?”
Eu me recuso a ser invisível , papai. Nem por você, nem para mãe, nem por ninguém.”
Big Boo em Orange is the new black
Uma história que se repete, ainda…
“Primeiro eles te ignoram, depois riem de você, depois brigam, e então você vence.”
Mahatma Gandhi
Quando comecei a fazer as minhas primeiras modificações corporais na década de 90, rondava um discurso violento que dizia “quer usar ferro na cara, que use fora de casa”. Não tive a experiência em si da expulsão, mas tive que vivenciar um ambiente em que a minha subjetividade e o meu corpo eram rejeitados e hostilizados. Eu estava na transição dos 15 para os 16 anos, trabalhava e estudava e, apesar disso, não tinha estrutura alguma e nem coragem suficiente para sair de casa. Por conta disso, tinha que pagar o preço de ter a minha identidade negada das mais variadas formas.
É óbvio que a necessidade de ter domínio sobre o meu corpo – e eu sou o meu corpo – e com isso construir a minha identidade, era maior do que o medo da expulsão acontecer na prática. Então, fui desafiando as regras de casa, resistindo e tentando mostrar, ou melhor dizendo, tendo que provar que eu ainda era uma pessoa boa. Eu tinha 16 anos e precisei provar para minha família que eu ainda era uma pessoa, que eu ainda era gente.
Tenho plena consciência de que me tornei piada para uma parte da família. Para outra eu era a pessoa que “deveria estar usando todo tipo de droga” e que “virou viado” (perceba que também havia um discurso declaradamente homofóbico). E também teve o repetido texto de que eu estava com sérios problemas psicológicos e que precisava me tratar, isso ainda ouço de vez em quando. Eu só queria ser feliz.
Uma hora você cansa, se isola mais, prefere o silêncio, deixa de ir nos encontros familiares, deixa de falar o que pensa porque as pessoas visivelmente não te ouvem. Não há escuta. Você se entristece, pensa em abandonar tudo… Você constrói a sua própria concha para si, mergulha nela sem medo e se instala… E das conchas nascem as pérolas.
O que seriam as pérolas? As pérolas são as forças que encontramos internamente para seguir adiante, brilhamos no escuro, porque temos luz interior. Ainda, penso que as pérolas sejam as relações de afeto e amor que construímos. Esculpimos como um exímio artista uma família nova, com base firme no respeito mútuo e amor. Não deveria ser o amor a base de toda família? Oras pois. Quando encontramos pessoas que nos aceitam pelo que somos e não pelo que elas desejariam que fôssemos ou idealizaram para nós, pessoas que nos escutam, ou que ainda não totalmente, mas já não nos tapam a boca e nem nos engessam os ossos… Ah! Uma diferença surge, novas possibilidades de experimentar a noção de família. Uma família que não faça questão de reforçar repetidamente o quanto os decepcionamos ao fugir daquilo que eles – de antemão – idealizaram como bom e melhor para nós, sem ao menos nos ouvir. Sem ao menos saber o que tínhamos para dizer…
A família que meticulosamente construímos – assim como fazemos com os nossos próprios corpos – é o que nos ajuda a seguir em frente, é o que nos ajuda a não desistir de tudo, é o que nos dá conforto de existir e, por fim, ter paz. Essa família, que não é consanguínea é o que inclusive nos faz – em alguns casos – a não desistir da nossa família original, pois descobrimos tanto sobre nós e sobre o amor, que retornamos para ela para dizer, “olha vocês estavam errados sobre mim e sobre todo o resto, mas tudo bem, vamos ver o que podemos fazer daqui para frente juntos”? Em alguns casos ainda é possível reatar laços e seguir em conjunto, noutros os laços nunca mais se refazem e se perdem no meio da explosão da intolerância. E há aqueles em que a morte chega antes da reconciliação. Nem todo mundo sobrevive para contar sobre esses processos, percebe a gravidade da coisa?
Escrevo e falo sobre tudo isso com muita naturalidade hoje porque não há mais ressentimento algum. Entendo que o meu processo pessoal de modificação corporal e o efeito disso na transformação da mentalidade, da minha própria e a do meu entorno, são pequenas vitórias conquistadas. As relações humanas são demasiadamente complexas e nunca estarão prontas, fechadas ou finalizadas, mas em um constante e frenético processo. Todo dia precisamos aprender algo novo uns com os outros. Muitas vezes precisamos zerar, desaprender tudo e começar tudo de novo e se não houver amor genuíno e não apenas desejo autoritário de posse e dominação, tudo estará perdido nesse processo.
“Comecei a ser invadido por um sentimento muito familiar dos meus tempos de garçom, de ser a única pessoa sã num hospício. Não faz você se sentir superior, mas deprimido e assustado, porque você não pode ter contato com ninguém ali. Foi nesse exato instante que decidi ir embora para casa.”
Jack Kerouac em “E os hipopótamos foram cozidos em seus tanques”
De um lado: O interesse da imprensa genérica pelos lares em ruínas e as modificações corporais
Em 2008, ano que organizei a Frrrkcon, a imprensa ficou bastante interessada no que estávamos fazendo. Foi o ano em que mais estive nos mais diferentes tipos de imprensa. Lembro que estava contribuindo com uma matéria para o jornal Diário de São Paulo e estávamos falando sobre modificações corporais, performance art, suspensão e pouco antes de fechar a pauta, a jornalista disse que os responsáveis gostariam de um relato da minha mãe. Não vi problema – naquele momento – e concordei, eles a entrevistaram e o título para essa chamada foi “Mãe sofre com visual do filho”, você pode CLICAR AQUI para ver a matéria inteira.
(E se a gente colocasse a chamada como “Mãe sofre com felicidade do filho“? Faria sentido? )
Trago esse dado agora para dizer que a imprensa adora dramas familiares e tragédias em potencial, isso vende jornal e da audiência, haja vista o que a Record fez com o Felipe Klein. Além do Diário de São Paulo, a maioria das entrevistas que concedi nesse período (e além dele também) foi acompanhada da pergunta “mas o que a sua mãe pensa?” ou se a minha família gostava do que eu estava fazendo com o meu corpo. Obviamente que a pergunta era carregada de má intenção, feita já sabendo ou prevendo uma resposta pronta, a da crise. Já esperando gerar um possível conflito ou no mínimo uma situação desconfortável e dramática. Porque no fundo todos sabem que famílias rejeitam pessoas não normativas e por mais que todos saibam, ninguém faz absolutamente nada e seguem vivendo como num fantasioso comercial de margarina. Porque tem gente que se beneficia com essa árvore falsa de plástico que finge dar frutos.
Depois desses episódios recebi outros convites para participar de programas de televisão e recusei, principalmente aqueles que queriam explorar a minha relação com a minha mãe. Fim ao cabo, eles não dão a mínima para a sua vida e, somente estão preocupados com o índice de audiência que vão ter. Eles não estão preocupados que você não consiga trabalho por conta da sua aparência, não se preocupam se você sofre violência física na escola, tão pouco se a sua família faz ameaça de te colocar na sarjeta. Se ter um bom número implicar em explorar e destruir alguém, tudo bem. Os fins justificam os meios.
A imprensa precisa aprender a fazer novas perguntas e a se questionar principalmente: como um pai consegue dormir a noite depois de espancar um filho por conta de uma tatuagem? Ou ainda, como uma mãe consegue dormir a noite depois de colocar a filha de 16 anos para fora de casa por conta de um implante na mão?
Em nosso íntimo sabemos que no fundo eles não fazem essas perguntas, porque grande parte das pessoas que giram a roda dessa indústria, acreditam que a culpa é da vítima que gerou um mal estar na inabalável estrutura da família. E também, é com a exploração das ruínas familiares que eles lucram e se embebedam. Como dizia o filósofo Jiddu Krishnamurti, “não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente“.
Por outro lado: O poder da imprensa e o efeito social e na família
“Se você não se ama, como diabos vai conseguir amar outra pessoa?”
Rupaul
Analisando o programa Rupaul Drag’s Race, escrevi o texto O toque de midas da mídia em meu blog, onde tratei entre outros assuntos, a relação que se apresenta no reality show das reconciliações entre os participantes e seus familiares. Trarei algumas linhas para cá, pois noto que a expulsão de casa por conta da sexualidade, identidade de gênero e/ou modificações corporais, bebem de uma única fonte: a intolerância. E qualquer pessoa que tenha passado pela situação em si ou parecida, possivelmente vai compreender mais adiante o que quero dizer, assim espero. Se de um lado a imprensa explora as desgraças humanas e lucra com isso, por outro lado, há quem veja status (real ou imaginário) nisso e isso precisa ser debatido.
Bem, em minha análise percebi que os dramas pessoais também estão sendo explorados no programa (como eu disse acima, isso vende), o que é comum em programas do gênero reality, mas por incrível que pareça não é a chave mestra, um tapa na cara de quem acredita e reproduz o discurso da chamada vitimização. A violência física e simbólica, o abandono, o medo, a culpa, o tombo, o suicídio… Tudo ali, sendo mostrado que existe.
É estranho ver tantas famílias abandonando suas crias especificamente por conta de identidade de gênero e sexualidade. São casos que se repetem e que são comuns na vida de qualquer pessoa não heterossexual ou cisgênero. Seja por experiência pessoal ou pela proximidade que tenho com o assunto, isso sempre aparece, o abandono e o medo de ser abandonado suspira próximo ao ouvido. O tempo todo podemos sentir o hálito quente da intolerância, seja da família ou do ciclo de amizades.
Em uma perspectiva freiriana, minhas reações são bastante críticas com as reconciliações que acontecem no programa. Não consigo deixar de pensar no oportunismo que ronda essas relações e demonstrações. Veja a ascensão do programa, a fama, o dinheiro… Acho estranho que de repente – após o toque de Midas da mídia – as famílias passem a se interessar por aqueles que colocaram para fora de casa com chutes nas costas.
É óbvio que as pessoas mudam, se desconstroem e que inclusive possam se redimir de modo genuíno, não estou dizendo que isso não pode acontecer. O meu ponto e crítica é que estranho saber que foi preciso uma pessoa chegar na televisão, em um programa de sucesso internacional, estar envolto pela fama e dinheiro, para que isso pudesse acontecer. Há uma violência dentro da família tradicional que precisa ser discutida de forma madura e aberta, o tempo todo.
Eu tive a chance de estar em um ou outro programa de televisão e senti na pele o poder dessa mídia. Sei que não importa a besteira que você diga, estar ali é entendido como sinal do mais refinado sucesso. As pessoas te tratam diferente, te veem diferente e, em um piscar de olhos, esquecem disso tudo também. Veja, eu faço trabalhos extremamente potentes fora da televisão, mas sinto que é quando apareço na tela que as pessoas se interessam. Obviamente que o interesse não é pelo trabalho que me levou até lá, mas sim por essa falsa imagem de fama, sucesso, glamour e dinheiro que na realidade não existe. É tudo ficção!
O programa da Rupaul me jogou na parede inúmeras vezes e tantas outras no chão. Torço para que as pessoas façam leituras críticas, do programa e da vida, e que ultrapassem apenas o mero entretenimento. Espero que essas relações humanas mudem algum dia. Que não exista medo do abandono e nem o abandono consumado por conta de identidade de gênero e sexualidade. Rogo para que não exista interesse apenas pela imagem do sucesso, mas pelo amor genuíno entre os seres. Sucesso é as pessoas se amarem e se ajudarem mutuamente para construção da tal sonhada vida boa. Vida boa, para toda gente.
Algumas notas sobre suicídio
“Muitas vezes elaboramos o suicídio como resultado de enorme sofrimento psíquico do indivíduo e depositamos sobre o sujeito toda a responsabilidade do ato que cometeu. Entretanto, já no século 19, o fundador da escola francesa de sociologia, Émile Durkheim, nos ensinou que toda a sociedade, com seus valores e crenças, é responsável pelas mortes voluntárias que produz.”
Vitor Angelo em “O suicídio entre jovens LGBTs”
Não pretendo me aprofundar nessa questão agora, uma vez que escreverei especificamente sobre isso em algum momento no futuro. Mas falando da relação entre família e modificação corporal, é impossível não falar sobre o suicídio.
Ronda o imaginário malicioso de que pessoas que fazem muitas modificações corporais são tendencialmente e potencialmente suicidas, as palavras não são exatamente essas, mas o significado em um bruto resumo é esse. Esse imaginário inclusive está introjetado e sendo reproduzido pelas pessoas da própria comunidade da modificação corporal, em outras palavras, há uma assimilação do discurso dominante que nos coloca como doentes e nossas práticas como uma patologia há ser medicada, combatida e curada.
Ora, vamos então falar breve e francamente sobre isso e talvez eu soe com dureza e aspereza agora. Você já parou para pensar como a sociedade trata as pessoas não normativas? Se não fez esse exercício ainda, vou te poupar do trabalho e te adianto com enfoque nas pessoas não normativas pertencentes às classes economicamente menos favorecidas, ou seja, a maioria: pessoas não normativas pobres são o tempo inteiro subjugadas; o tempo inteiro precisam provar que têm caráter; o tempo inteiro são apontadas e inferiorizadas; o tempo inteiro ouvem que são como ou uma doença e que como tal deveriam no mínimo ser combatidas; pessoas não normativas pobres não conseguem emprego sem antes passar por um verdadeiro martírio, o que implica muitas vezes em ter que anular a própria identidade; não conseguem estudar porque são o tempo inteiro desencorajas por intimidações que se manifestam de diversas formas; pessoas não normativas pobres são destratadas pela família, expulsas de casa, agredidas psico e fisicamente pelos papais, mamães, irmãos, irmãs, titios e titias… Ficou claro assim? Espero.
Dito isso, veja, a maior taxa de suicídio entre jovens e adultos (entre 15 e 29 anos), está relacionada com pessoas que se identificam como LGBTQI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queers e intersexuais). De acordo com pesquisas as tentativas ou os suicídios consumados estão relacionados com a heteronormatividade e com a LGBTfobia institucionalizada. Jovens rejeitados pelos pais, pela família e pela sociedade de modo geral, correm mais riscos. Não à toa que no topo da lista dos suicídios estão as travestis e pessoas transexuais. Não é à toa que a campanha It Gets Better, que tem como objetivo conscientizar jovens LGBTs contra o suicídio, teve apoio e participação da produtora Pixar, do Facebook e até do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Enquanto isso no Brasil, não só não temos campanha desse porte, como temos políticos, pastores e todo tipo de gente torcendo mesmo é que para que nos suicidemos todos.
“Já estava num desespero tão grande que, na hora de atravessar a passarela de volta, parei e pensei: “Eu devia me jogar”. Sabe, eu amo a vida, nunca tinha pensado em me matar. Mas ali eu tava mesmo, seriamente, querendo tirar a minha vida. Não gosto nem de pensar naquele dia…”
Luísa Marilac em “Por não arrumar emprego, travestis até se matam”
A sociedade retira toda e qualquer dignidade dessas pessoas (o que me inclui e pode te incluir também) e, não bastando, oferece um mundo em que a existência delas seja o tempo inteiro um problema, um fardo… Muitas não suportam e se suicidam e acabam se tornando apenas números e estáticas, para que – quem sabe um dia – a sociedade aprenda sobre isso. Qualquer semelhança com as pessoas da comunidade da modificação corporal, não é mera coincidência, são relações muito próximas. Retornando aqui para elas, as pessoas modificadas, veja, se você depois de ler essas informações ainda continuar dizendo que “pessoas modificadas” se suicidam apenas porque é assim que é quando se ‘fica freak demais”, você está ignorando todo esse sistema cruel de segregação e exclusão social em que vivemos e que não é de agora. Um aparato de sucateamento de gente movido pelas instituições da família, da igreja e do Estado.
Se você depois de ler tudo isso seguir reproduzindo esses pensamentos, pode ser fruto de você viver na zona de conforto da normatividade, pode ser fruto de seus privilégios normativos e como também pode ser fruto de um possível mau caratismo. Em todos os casos se reveja, indireta ou indiretamente isso te afeta.
“Existem dois principais pecados humanos a partir dos quais derivam todos os outros: impaciência e indiferença. Por causa da impaciência fomos expulsos do Paraíso, por causa da indiferença não podemos voltar.”
Franz Kafka
Laço amarelo e o perfume da hipocrisia
“As pessoas não são más,
elas só estão perdidas,
ainda há tempo.”
Criolo
Criou-se agora o Setembro Amarelo, mês em que mundialmente se combate o suicídio. Especificamente o dia 10 foi instituído como Dia Mundial de Prevenção do Suicídio. Mas fico me perguntando, o que de fato estamos fazendo para combater o suicídio? Ou ainda, quando esse discurso não se torna apenas mais um produto da comoção seletiva e generalizada, sem meias palavras, hipócrita? Será que estamos de fato combatemos a raiz do problema? Receio que não.
Pensando novamente a população LGBTQI, e sua alta taxa de suicídio, o que fazemos para essas pessoas? Nada, migalhas não são suficientes para que uma pessoa possa viver com dignidade. Então me soa hipócrita ver pessoas LGBTQIfóbicas com um laço amarelo no peito ou falando do horror que é o suicídio, quando nada fizeram para melhorar a vida das pessoas e não só isso, muitas vezes fazendo muito para piorá-las. Me soa extremamente hipócrita ver família que expulsa filho e filha de casa por conta de seus corpos o que abarca o gênero, a sexualidade e a subjetividade, com laço amarelo no peito em Setembro, fazendo discurso sobre a importância da vida.
A linha que separa a real preocupação da hipocrisia é muito tênue. E é preciso muita cautela para a comoção do Setembro Amarelo, não ser apenas um cinismo disfarçado de boa ação. Temos uma reparação histórica para se fazer com as pessoas não normativas e enquanto não nos conscientizarmos disso, laços amarelos não serão suficientes.
Não ter dignidade nem na morte
“…Todos os homens odeiam os infelizes, então devo ser odiado, que sou o mais miserável dos seres vivos! Ainda sim, você, meu criador, me detesta e me despreza, a sua criatura, você, que me criou, me negou o afeto, o amor. Você propõe-se a me matar. Como ousa brincar dessa forma com a vida? Cumpra o seu dever para comigo, e eu
cumprirei o meu para com você e o resto da humanidade. Por acaso eu te pedi, meu criador, que da escuridão me tirasse, que me desta vida?”
Frankenstein de Mary Shalley
Você percebe o ápice da desumanização e do desrespeito no ato da morte. Não basta apenas morrer, você ainda é morto uma segunda, terceira e quantas vezes forem necessárias. Se você em vida era uma mulher trans, você corre o risco de sua família cortar seus cabelos, te vestir feito homem e te enterrar com o nome de registro. Se você é um homem trans, o seu caixão pode ser lacrado e você ser enterrado com o nome de registro, que nada diz sobre quem você foi. Estou falando sobre casos e não hipóteses.
Se você tem modificações corporais em vida, sua família pode te encher de maquiagem e remover tudo o que você tinha em seu corpo. Eles podem te fantasiar daquilo que eles esperavam que você fosse, daquilo que os agradaria, porque tudo gira em torno disso, do que eles querem. Na vida e na morte.
Eu não estou escrevendo sobre somente o que ouvi ou que eu li, estou escrevendo sobre coisas que vivi. E essas experiências todas – para além do bem e do mal – me transformaram. Escrever sobre isso agora – é muito mais do que um mero desabafo – é um grito visceral, inclusive por aquelas e aqueles que não estão mais aqui para faze-lo junto de mim. Escrevo para que as novas gerações não tenham mais que passar por essas situações, que não tenham medo, que não se deprimam. Que isso seja apenas parte de um passado que um dia iremos olhar com vergonha e ao mesmo tempo com um certo regozijar por termos superado essas pequenitudes todas.
Ainda há tempo…
1 thoughts on “Da mesma família até que as modificações corporais nos separem…”