Quem vê de fora ou tem pouca familiaridade com o assunto das modificações corporais, acha que se trata de um grupo homogêneo, harmônico (entre si e com o mundo) e que, por ter a tatuagem em comum, tem um alinhamento integral. Em resumo: uma coisa só ou tudo a mesma coisa. Ainda é comum ouvirmos – em tom de afirmação algumas vezes e dúvidas em outras -, que somos uma tribo, em alusão ao conceito de tribos urbanas, cunhado em 1985 pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, e que foi bastante usado na década de 90 no Brasil. Assim como antes resumiam a comunidade LGBTQIA+ na categoria de homossexual (e só). É mais fácil e simples achar que tudo é uma coisa só, mas não é o correto, e acima de tudo, é perigoso.
A tatuagem é quase o ponto central de todo olhar estrangeiro sobre as pessoas com modificações corporais. É como se tudo girasse em torno dela. Inclusive outra situação bastante comum é relacionar que pessoas com modificações corporais trabalhem com tatuagem. Dentro das construções reducionistas dos estereótipos, o lugar que colocaram para pessoas com modificações corporais é esse, como se não houvesse muitos outros caminhos e possibilidades para corpos assim. A sustentação da noção do gueto. Há um tom de espanto, dúvida e desapontamento quando explicamos que não trabalhamos com tatuagem. Algo do tipo: como você pode ser assim e não trabalhar com tatuagem? Acontece.
E quando temos o corpo modificado e trabalhamos fora dos ofícios das modificações corporais sempre paira uma certa suspeita sobre competência e caráter. Essa parte renderá um outro texto no futuro.
Estou falando disso para trazer uma reflexão importante e que tenho movido em aulas, encontros, palestras e nessas movimentações do corpo (e a mente está dentro do corpo).
Em nosso recorte de modificações corporais, isto é, práticas culturais de manipulação do corpo para atender interesses que escapam (ou escapavam) dos padrões sociais aceitáveis impostos pela normatividade compulsória, não são uma coisa só. Não há homogenia, não há harmonia e nenhum tipo de alinhamento integral. Nunca houve, nunca existiu algo assim e aqui é um apontamento importante deveras.
Ao grupo de pessoas que modificam seus corpos dentro do recorte que nos debruçamos, chamamos de comunidade da modificação corporal. É algo bastante complexo e extenso, é uma comunidade que tem de tudo (de verdade) e é importante entender essa parte, para que nossas escolhas ideológicas e decisões sobre o que queremos no mundo sejam intencionais, conscientes e abertas. É importante também por questões de segurança.
Na comunidade da modificação corporal temos um espectro de possibilidades, longe de querer reproduzir uma noção binária de mundo, é importante ter consciência que em uma das pontas vamos ter neonazistas, supremacistas brancos, racistas, LGBTfóbicos, fascistas, agressores de mulheres, fundamentalistas religiosos e uma quantidade absurda das pessoas chamadas “isentonas” que clamam por uma neutralidade que, ironicamente, sustenta as estruturas e instituições que nos violentam, ou seja, não existe essa tal neutralidade, sabe?
Já que falamos da tatuagem como ponto central sobre nós, trago um exemplo prático para gente pensar espaços seguros. Quando vamos em uma Convenção de Tatuagem, por exemplo, o espectro da comunidade da modificação corporal que mencionamos acima está lá. E se em uma das pontas temos aqueles perfis que ilustramos, no restante do espectro vamos ter o avesso daquilo tudo. Nesse sentido, uma convenção de tatuagem é um barril de pólvora. Principalmente em tempos em que os fascistas (e isentões) conseguiram colocar um homem que representa suas ideologias na cadeira de presidente do país. Os discursos de ódio que sustentam essa gente estão legitimados desde então. Percebem?
E já que falamos do avesso, chegamos agora na comunidade freak. Se na comunidade da modificação corporal temos um espectro de possibilidades, aqui a coisa se amplifica, se intensifica e se radicaliza. A comunidade freak é radical. É extrema.
A exploração técnica de procedimentos está muito além da tatuagem e do body piercing, práticas que hoje se encontram assimiladas e cada vez mais em sintonia com os interesses (estéticos e políticos) da burguesia e, pasmem, com a normatividade compulsória. Essa parte rende um outro texto com aprofundamentos.
E para além da transformação e modificação do corpo em si, há uma característica profunda, que é o desejo da transformação de si (internamente) e do mundo (a revolução). Nesse sentido, costumo dizer que a comunidade freak seria a parte politizada da comunidade da modificação corporal. Uma politização consciente e um entendimento cristalino de que todo corpo é político. Uma politização progressista e que tem no desejo da liberdade o entendimento que estamos diante de uma luta constante. Uma politização antifascista, antirracista, anticapitalista, anticapacitista, antimanicomial, antiLGBTfobia, antisexismo, antipunitivista, etc. Uma politização alinhada e coerente com a própria história da modificação corporal e dos corpos subalternizados, que nunca foi apenas sobre celebrar a diferença, mas sobre lutar brava e constantemente contra os sistemas que desumanizaram grupos de pessoas. É vulcão em erupção. É coquetel molotov.
Não quero com isso dizer que a comunidade da modificação corporal seja despolitizada, ao contrário, estou sublinhando o tipo de politização que circula por ali. Novamente: todo corpo é político. Ambas as comunidades são articuladas por ideologias, enquanto uma aceita que possa haver alinhamento com a extrema-direita, por exemplo, a outra está se organizando coletivamente e dizendo: nós não nos sentamos com vocês. “Não existe imparcialidade, todos somos orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?”, já questionava Paulo Freire.
Não é tudo a mesma coisa. Nunca foi. Nunca será.
Entender é também se proteger, se defender e, mais do que isso, alinhar a forma que você pretende estar no mundo. Leia ali o Manifesto Freak.
A gente conversa mais um pouco em breve.
1 thoughts on “Comunidade da modificação corporal é uma coisa, comunidade freak é outra…”
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