Temos a hipótese de que sem as mídias digitais específicas a comunidade da modificação corporal seria hoje um lugar bastante diferente e provavelmente muito menor. Reconhecendo essas plataformas como fundamentais para propagação e consolidação da cultura da modificação corporal e diferentes usos do corpo na contemporaneidade e, construções de redes de pessoas ligadas com essas culturas, precisamos refletir sobre as suas permanências. E inclusive, sobre a fragilidade desses espaços no tempo. Impermanências.
Chamamos de mídia digital específica plataformas alocadas na internet que tratavam ou tratam pontualmente das modificações corporais e diferentes usos do corpo. Marcadas pelo protagonismo, no sentido de que foram e são plataformas desenvolvidas e mantidas pelas próprias pessoas que viviam ou vivem essas práticas e culturas.
Segundo o livro A modificação corporal no Brasil – 1980-1990 (SOARES, 2015) a mídia específica começou a se constituir na década de 90 do século passado, impulsionada e radicalmente transformada pela chegada da internet no Brasil.
Em 1994 surgia na web o site de maior importância e peso dentro do contexto das práticas das modificações corporais contemporâneas e diferentes usos do corpo, o BMEzine.com (sigla para Body Modification Eletronic Zine). Plataforma fundada no Canadá por Shannon Larratt (1973-2013).
O BME, como é mundialmente chamado e conhecido, nasceu como um site pessoal onde Shannon pudesse falar sobre as coisas que tinha interesse, e assim ele acabou descobrindo que várias pessoas estavam interessadas nos mesmos assuntos. Ao seu modo, o BME colocou a modificação corporal em outro “lugar”, reunindo praticantes de todas as partes do mundo e abrigando experiências corporais – textos, vídeos e fotos – das mais diversas formas possíveis e imagináveis. Colaborando com a construção e fruição de uma subjetividade e cultura que por tempos sofreu um processo de estigmatização.
“ Somos uma subcultura incomum e comunidade construída por e para pessoas modificadas. Nós somos historiadores, profissionais e apreciadores da modificação corporal. Nós somos os meios colaborativos e de compreensão para a liberdade da individualidade em pensamento, de expressão e estética. Servimos a você e a nós mesmos como uma fonte de entretenimento, inspiração e comunidade.”
Livre tradução do “sobre nós” do BMEzine
Foi com Shannon Larratt que aprendemos a ideia de que pertencíamos a uma comunidade. E se hoje falamos tanto em e de comunidade é por conta dele.
Dentro do BMEzine.com foi criado o IAM, uma rede social e a grande responsável por proliferar em meses atividades que antes eram vistas como marginais e patologias. Aqui a noção de comunidade não ficava apenas no plano das ideias mas era experimentada.
As primeiras gerações de pessoas da comunidade da modificação corporal frequentemente citam o BME em algum momento, quando contam sobre suas experiências com as modificações corporais, hoje com um tom de saudosismo. Seja pela morte de Shannon ou pelas próprias mudanças da plataforma e da própria comunidade da modificação corporal. Antes relegada ao gueto e hoje ocupando as mais diversas redes sociais, em algumas delas como verdadeiras celebridades com milhares de seguidores.
Mas como o BMEzine impactou tão profundamente o cenário da modificação corporal brasileiro sendo que é um site inteiro escrito em inglês? É preciso entender que a modificação corporal no Brasil – da forma que a conhecemos hoje – aconteceu inicialmente em grupos de jovens da classe média. Em sua maioria, essas pessoas tinham o domínio do idioma inglês e/ou espanhol, por aprenderem em suas viagens para o exterior ou por estudarem em colégios bilíngues ou por terem condições econômicas de pagarem por bons cursos de idiomas.
Outro ponto que se faz importante considerar foi que o website se tornou uma gigante – a maior no mundo na época – galeria de imagens sobre técnicas de modificações corporais, das mais simples aos extremos e mais radicais experimentos. Sendo assim, algumas pessoas dispensavam a leitura textual e passaram a “ler” as informações através das imagens que ali estavam expostas. Shannon mencionou este fenômeno como um efeito de mimetismo.
O BMEzine.com (e seus “filhotes” ou “braços”, IAM, Modblog, BME Encyclopedia), teve um papel fundamental para o crescimento e consolidação da modificação corporal no mundo e um profundo impacto no Brasil. Aparentemente o canadense Shannon estava ciente de seu papel, tanto que afirmou em entrevista para Lukas Zpira que: “acho que sem o BME (ou algum site similar) o mundo da modificação corporal seria um lugar muito diferente – e bem menor“.
Mesmo com o avanço e o frenesi da internet no Brasil em fins da década de 90, tivemos os primeiros websites sobre a temática no Brasil somente na primeira década do ano 2000 e vale frisar que não foram muitos. Hoje ainda são poucos.
Em Outubro de 2001 os fotógrafos paulistanos Louise Chin e Ignacio Aronovich deram vida ao Lost Art. Mais que um portfólio eletrônico da dupla, o site possibilitou aos internautas conhecerem lugares, pessoas e costumes peculiares. Desde o início abordaram temas sobre a body art e a body modification, acompanhados de fotografias e entrevistas bastante interessantes sobre a temática.
Apesar do Lost Art não ser uma mídia específica – escapando da definição que fizemos acima -, sem dúvida alguma, se faz necessário destacar sua relevância como canal midiático histórico para a temática aqui tratada, considerando a quantidade de registros que não se encontram em outros lugares.
Saindo novamente um pouco no Brasil, mas abordando uma outra mídia que colaborou bastante para a propagação da modificação corporal no mundo, foi a criação da revista e website argentino Piel Magazine no começo de 2001. Parecido com o BMEzine, mas com sua própria linguagem e estética latina.
O website da Piel Mag foi articulado por Javier Maidana e La Negra entre 2001 e 2002, depois disso sendo administrado apenas por La Negra, ficando ativo até 11 do 11 de 2011. O seu fim marcou também o fechamento de um importante ciclo para comunidade da modificação corporal latina.
Em 2002 surgiu então o primeiro website nacional voltado fortemente para a modificação corporal e suspensão, o Neoarte.net administrado por Filipe Berndt de São Paulo.
O site trazia galeria de fotos de procedimentos, vídeos e textos de experiências corporais, de forma bastante fechada, no sentido de que os procedimentos, em sua maioria, eram feitos no ou pelo próprio Filipe, quando não, em amigos e amigas próximas dele. Nesse sentido, nos parece que o início do Neoarte foi muito parecido com o do BMEzine.
Em 2005, em uma matéria da revista Super Interessante, o Neoarte.net foi considerado um dos principais sites sobre a temática no Brasil, diríamos mais, era o único no período. De 2002, quando foi criado, até o mês da publicação daquela edição da revista, maio de 2005, o site já havia recebido mais de meio milhão de visitas, indicando intenso interesse pelo assunto na época. Embora a comunidade fosse relativamente menor quando comparamos com o presente.
Em 2007 houve a transformação do Neoarte.net – enquanto plataforma sobre modificação corporal – em portfólio do Filipe Berndt que se tornou fotógrafo profissional. Criou-se com isso uma lacuna no campo eletrônico nacional no que diz respeito a abordagem das modificações corporais para além da tatuagem.
Haviam no Neoarte e na Piel Mag uma grande quantidade de documentação histórica em fotografias, textos e vídeos que com as mudanças e encerramentos se tornaram indisponíveis. Lamentamos, porque são histórias sobre as nossas culturas que se perderam.
Em 2006 surgiu o FRRRKguys, a nossa plataforma, galgando novos espaços e trabalhando na ampliação do cenário nacional da modificação corporal.
Tivemos um começo parecido com o do BMEzine e do Neoarte, no sentido de que atendia uma demanda particular da T. Angel em construir um espaço virtual sobre corpos modificados e que se percebeu o interesse de outras pessoas pela abordagem ali proposta.
Sabemos que historicamente a modificação corporal foi tratada e entendida como marginal, abjeta e transgressora, o FRRRKguys buscava ressignificar todos esses estigmas e marcas. Nesse sentido assumiu a identidade freak enquanto prática estética e política. Iniciando com a ideia de que era preciso falar da beleza freak. Assumir e sublinhar a beleza de corpos que outrora eram vistos como abjetos, e só, tinha um declarado cunho político, que demorou para se tornar consciente para nós. Apenas estávamos vivendo o projeto com toda precariedade e limitação que marcou toda a nossa história. Soma-se ainda que se tratava de abordar a beleza dos corpos masculinos que passaram por diferentes técnicas de modificações corporais. Beleza e masculinidade em 2006 não eram assuntos que poderiam caminhar serenamente juntos, nem no campo eletrônico e tão pouco fora dele, sem escapar da toxicidade e fragilidade da masculinidade.
O FRRRKguys que surgiu inicialmente como uma galeria de fotos de meninos com modificações corporais – sublinhando que havia beleza ali -, gradativamente foi se transformando em um portal sobre modificação corporal, arte corporal e diferentes usos do corpo. O processo de transformação atendeu um fluxo natural de amadurecimento de um trabalho e da pessoa que o tem administrado sozinha desde a sua criação, T. Angel. Acompanhando também as próprias transformações que ocorreram na sociedade para além do mundo eletrônico e para além das modificações corporais.
A mídia específica que se formou na primeira década do ano 2000 e que segue ativa quase duas décadas depois, indubitavelmente, tem colaborado fortemente para as fruições da cultura da modificação do corpo. Ter a consciência disso implica em tratar esses espaços com respeito por suas contribuições e reconhecer suas respectivas relevâncias históricas. Entender inclusive a impermanência desses espaços digitais que a qualquer momento podem deixar de existir, como os exemplos já nos mostraram antes. E, principalmente, por serem espaços independentes colaborar para que os que ainda estão de pé não caiam. E, quiçá, os que caíram, possam se reerguer.
BMEzine, Piel Mag, NeoArte e o FRRRKguys – cada qual no seu tempo e ao seu modo – foram fundamentais para a comunidade da modificação corporal. Para nós que estamos há tanto tempo vivendo essas práticas e culturas é estranho ver as novas gerações chegando sem a menor preocupação em conhecer as nossas histórias e como foi que conseguimos chegar aqui da forma que chegamos e estamos.
Se existe uma dica que podemos passar para vocês é: façam printscreen das páginas que acharem interessante, copiem, colem, salvem, imprimam e guardem. Não há garantia alguma que as plataformas digitais existam pra sempre. Inclusive falamos por nós e pelo nosso trabalho. Hoje estamos aqui e o amanhã… Bem, o amanhã é completamente desconhecido e incerto. Por isso, salvem o que consideram importante para vocês.