Body modification: apropriações culturais e falhas interpretativas

Nossa pesquisa apontou que não há uma grande reflexão por parte dos profissionais e entusiastas da body modification acerca da importância histórica de suas práticas, pressuposto que desenvolveremos daqui em diante. Queremos dizer com isso que a modificação corporal acontece, mas ao mesmo tempo não se pensa o processo e tão pouco o corpo como sendo objeto social, político, histórico e cultural. Algumas preposições seriam a de que isso se dá pela demasiada heterogeneidade do grupo, tão logo, uma “desunião”; a falta de material de qualidade que discuta questões pertinentes aos grupos; por fim, a própria assimilação de um discurso dominante que os desqualifica como sujeitos históricos.
Assim sendo, é bastante comum e frequente as interpretações culturais inadequadas, assim como falhas interpretativas, como veremos a seguir.
O depoimento de nossa entrevistada a artista plástica Priscilla Davanzo vai de encontro com a ideia de Kênia Kemp no livro “Corpo modificado, corpo livre?”, isto é, de que a apropriação cultural, muitas vezes equivocada é o “esvaziamento dos símbolos na cultura consumista”. O que é bastante crítico, pois além de se tratar de um “resgate equivocado”, viola o que para as sociedades tradicionais é sagrado.

Tatuagem e piercing
Uma boa ilustração sobre as apropriações errôneas dentro do campo da tatuagem, por exemplo, é o uso dos kanjis, grafia oriental que no Brasil também é sinônimo de ideograma. Enquanto teremos uma utilização bastante fidedigna no filme The book pillow (França, 1996) dirigido por Peter Greenaway , onde corpos se tornam livros, o que a realidade ocidental tem nos mostrado é o avesso. Temos um uso frequente regado de total  desconhecimento do significado ou o emprego equivocado dos ideogramas em si.
O mesmo acontece quando tentam justificar ou dar significado ao body piercing, onde os textos são constantemente fantasiosos e em sua maioria distantes de qualquer vínculo com as sociedades tradicionais.

THE PILLOW BOOK' A PETER GREENAWAY FILM(The Book Pillow, França, 1996)

Suspensão vertical pelo peito e O-kee-pa
Na passagem abaixo, que está contida no site BMEzine.com, percebemos a apropriação cultural violando um dos rituais dos nativos norte-americanos:

“É importante notar que muitas pessoas preocupadas com apropriação cultural sentem que chamar essa suspensão de “O-Kee-Pa”, ao invés de apenas uma “suspensão vertical pelo peito” é profundamente desrespeitoso aos nativos americanos, e este nome é raramente utilizado, ao menos que também seja usado para se referir ao conjunto de rituais e mitos que cercam o O-Kee-Pa real. A suspensão vertical de dois pontos no peito não é um “O-Kee-Pa” assim como beber um copo de vinho no jantar não é tomar comunhão.”

George_Catlin_-_The_Last_Race,_Mandan_O-Kee-Pa_Ceremony_-_WGA04575(Imagem de um ritual Mandan por George Catlin)

O professor de antropologia e sociologia francês David Le Breton aponta que “Fakir Musafar melindrou os índios mandans”, ao que se inspirou para cunhar o termo “dança do sol” ou o “o-kee-pa”. Estes inclusive conseguiram com que ele deixasse de utilizar o termo, o que reafirma a ideia de apropriação cultural inadequada.
Como já foi mencionado acima, o BMEzine foi o principal propagador de informação para o público praticante das modificações corporais e profissionais da suspensão corporal no mundo e mesmo contendo nele que “uma suspensão vertical pelo peito com dois pontos” não deve ser chamada de “O-kee-pa”, por desrespeitar os ritos dos nativos americanos, não é o que acontece na prática.
Por que ainda hoje esse público utiliza de forma bastante equivocada um termo que desrespeita a cultura de um povo ao qual eles dizem respeitar? Talvez porque muitos dos praticantes (profissionais e entusiastas) desconheçam os equívocos e apenas seguem com o ciclo de reprodução de termos vazios de significado e de forma bastante rasa. São agentes que sentem – como toda a sociedade contemporânea – o peso do véu do obscurantismo posto sobre estas práticas seculares.

“Uma trama de preconceitos obscureceu por muito tempo o conjunto de pesquisas a esse respeito. Dupla falta de conhecimento, a do significado íntimo da marca tegumentar nos meios populares; e duplo desprezo: sentimento de superioridade da civilização “branca”, portadora de “progresso” […]” – David Le Breton

 Por mais que representem sagrados íntimos, não se deve interferir ou usurpar a representação milenar que o ritual tem em dada sociedade. Retirá-la de seu contexto histórico e cultural é intrinsecamente retirar a essência da prática.

230397_2025260069857_6329279_n(suspensão vertical pelo peito)

Body art e body modification
Uma outra confusão crítica, que chega a se estabelecer como verdade, é com os termos e conceitos de body art (arte corporal) e body modification (modificação corporal).
O respectivo texto não tem como proposta elucidar todo o campo da body art visto a complexitude e profundidade do mesmo. Ao mesmo tempo se faz necessário estabelecer distinções entre os termos, uma vez que se tratam de diferentes coisas.
Dito de forma simples, a body art é uma coisa e body modification outra, não se tratam de lugares comuns. Todavia cabe pontuar que tais práticas podem caminhar em conjunto, o que não quer dizer que isso ocorra em todas as situações. Existem variações de acordo com os pressupostos envoltos em cada processo: a body art pode acontecer sem estar ligada com a modificação do corpo e a modificação corporal não está sempre inclusa em um contexto artístico. O que há de ponto comum entre os dois termos – tão logo distintos movimentos – é unicamente o corpo.

A professora doutora Célia Maria Antonacci coloca que a body art é:

“[…] o movimento artístico que despertou no meio dos criadores estéticos contemporâneos – final dos anos 60, década de 70, e ainda hoje – a importância sensível do corpo humano.” (RAMOS, 2001, p.117)

 

O performer e pesquisador brasileiro Renato Cohen dizia que a body art é o movimento em que “o artista é sujeito e objeto de sua arte (ao invés de pintar, de esculpir algo, ele mesmo se coloca enquanto escultura viva)”. Dentro desta perspectiva o artista se tornaria um performer e segundo Cohen a performance advém de artistas plásticos menos que de artista cênicos, apenas para reforçar a raiz da questão. A origem da body art está fortemente ligada ao happening e a performance art e seu surgimento está atribuída aos artistas vienenses.

rec11111 (Passeio vienense (1965) de Günter Brus)

As nossas pesquisas e entrevistas apontaram que para os artistas da body art, ambos os conceitos – arte corporal e modificação corporal – estão bem delineados e claros. O que já não acontece nas pesquisas com profissionais e entusiastas da body modification, para estes, body art e body modification querem dizer a mesma coisa e inclusive, afirmam que seus processos e experiências corpóreas estão dentro do contexto da body art.
A artista Priscilla Davanzo é um caso bastante esclarecedor sobre a discussão. Um dos seus trabalhos intitulado “As vacas comem duas vezes a mesma comida” (2000), a artista tatuou manchas de vaca em diversas partes do seu próprio corpo.

“O trabalho consiste na decoração do corpo, com o objetivo de representar de forma estilizada manchas de vaca, e está sendo realizado por meio de tatuagem.”

18(Priscilla Davanzo em foto de Fabia Fuzeti)

A obra discute as relações humanas nas suas mais variadas possibilidades, colocando em questão a insatisfação com a própria espécie. Em uma sociedade onde as relações são líquidas, a artista utiliza seu corpo para questionar inclusive a permanência das coisas:

“As pessoas se assustam com o permanente porque ninguém quer assumir compromissos, se eu me pintasse, seria vaca por um dia. Estou me propondo a ser vaca para sempre.”

Com a citação do trabalho da Priscilla queremos evidenciar que o trabalho de body art exige uma estruturação que engloba pesquisa, análise e conceito. Como a própria artista pontua que poderia ter utilizado a pintura para expressar a questão da vaca, mas a técnica não sustentaria o pressuposto de “assumir compromisso” e ser indelével.
Ainda pensando a body art, Breton afirmou que “o corpo é o lugar onde o mundo é questionado”. Assim sendo é correto afirmar que a body art acontece inclusive sem a body modification. O que colabora com nossa afirmação como itens e terminologias distintas e que precisam ser tratadas de maneiras diferentes.


A apropriação do termo body art para designar as marcas corporais nos leva pensar no caráter de auto-afirmação e legitimação da prática. Como se assumindo o discurso “isto é arte” fosse uma forma de validar algo que vem sendo secularmente subjugado socialmente. Não é o caminho, assim acreditamos.
As revistas de tatuagem e panfletos que consultamos vão reafirmar a confusão e constantemente vão citar sobre as situações da “arte corporal” no Brasil, quando na realidade estão se referindo à modificação do corpo.
Nem toda modificação corporal pode ser compreendida como arte, pois se assim o fosse, significaria compreender o body building, a maquiagem, a cirurgia plástica e até mesmo o simples fato de cortar o cabelo como arte.
Cada prática tem a sua relevância e especificidade, não ser considerada como arte, não deixa de ter valor como fenômeno social bastante peculiar da história humana.
Como sabemos as práticas da body modification na contemporaneidade brasileira aconteceram nos anos 80 e 90 (60 e 70 no exterior) com maior força e oriundas de diversas correntes: música, cinema, moda, contra cultura, mídia e etc. Não necessária e obrigatoriamente da arte. De acordo com David Le Breton:

“O sucesso das marcas corporais cresce associado à idéia implícita de que o corpo é um objeto maleável […] Elas escapam dos lugares marginais do sadomasoquismo, do fetichismo, do punk, absorvidas por aquilo que se convencionou chamar as “tribos urbanas” (punk, hard rock, Techno, grunge, bikers, gays etc), e propagam-se para o conjunto da sociedade por intermédio da alta-costura, principalmente por manequins de Gautier, com uma predileção pelas gerações jovens que crescem no ambiente intelectual de um corpo inacabado e imperfeito, cuja forma o indivíduo deve completar com seu próprio estilo.”

 Concluindo, cabe demarcarmos de forma bastante pontual é que a modificação corporal não necessariamente é uma manifestação artística, o que não a desqualifica como prática cultural e social e tão pouco retira sua legitimidade simbólica e histórica.

* O presente texto é parte editada da pesquisa de iniciação científica “A modificação corporal no Brasil – 1980-1990” realizada pelo historiador Thiago Soares  no Centro Universitário FIEO.
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Bibliografia

ARAUJO, Leusa. Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2005.

BRAZ, Camilo Albuquerque de. Além da Pele – Um Olhar Antropológico Sobre a Body Modification em São Paulo. Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 2006.

CALLIGARIS, Contardo. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Editora Atica, 1996.

COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.

KEMP, Kênia. Corpo modificado, corpo livre?. São Paulo: Paulus, 2005.

LARRATT, Shannon. Modcon: The secret world of extreme body modification. Canada: BMEbooks, 2002.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo. São Paulo: Papirus, 2003.

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma História do corpo na idade média. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2006.

RAMOS, Célia Maria Antonacci. Teorias da Tatuagem. Santa Catarina: Udesc Editora, 2001.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpos de passagem, ensaios sobre a subjetividade contemporânea, São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2001.

___________________. Políticas do Corpo, Elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1995.

VÍDEO

GREENAWAY, Peter. The pillow book. [Filme-vídeo]. França, 1996.
SILVERSTEIN, Elliot. A man called horse. [Filme-vídeo]. EUA, 1970.

SITES

Body Modification Ezine. Disponível em:. <www.bmezine.com>. Acesso em: 23 Setembro de 2010.

Shannon Larrat. Disponível em:. <http://www.zentastic.com/>. Acesso em: 23 Setembro de 2010.

As vacas comem duas vezes. Disponivel em:. <http://www.gasolinafilmes.com.br/projeto/projeto.htm>; Acesso em: 23 de Setembro de 2010.

 

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