“Neste aniversário de Stonewall, peço a minhas irmãs e irmãos gays para fazer o compromisso de lutar. Para si, pela sua liberdade, para o seu país … Não conquistaremos nossos direitos ficando tranquilos em nossos armários … Estamos saindo para lutar contra as mentiras, os mitos, as distorções. Estamos saindo para dizer as verdades sobre gays, porque estou cansado da conspiração do silêncio, então eu vou falar sobre isso. E eu queria que vocês falassem sobre isso. Vocês devem sair. Revelem-se a seus pais, a seus parentes.”
Harvey Milk, Discurso da Esperança
Em alguns anos – em um futuro não tão distante – veremos e teremos uma comunidade da modificação corporal no Brasil diferente de tudo o que já vivenciamos. Temos percebido o aumento significativo da presença das mulheres no meio da tatuagem, do body piercing, das demais técnicas de modificação do corpo e chegando até a suspensão. As duas listas que publicamos em 2016, seja das tatuadoras que você pode ver CLICANDO AQUI ou das perfuradoras que você vê CLICANDO AQUI, não nos deixa mentir. Além das mulheres no meio é perceptivo também o aumento de profissionais não brancos, embora em um número menor do que gostaríamos de ver (rever as listas acima citadas), o que nos leva a refletir nas causas dessa população ainda não alcançar essas áreas, assunto para um texto futuro.
Retomando, pessoas negras e orientais estão trazendo para a comunidade da modificação do corpo de hoje novas possibilidades que vão além da estética, embora historicamente pensando são essas populações responsáveis por várias técnicas que conhecemos, não nos esqueçamos disso. São profissionais que estão descobrindo – e reivindicando que se descubram – mais sobre as peles não brancas, sobre o que é possível fazer no campo da tatuagem, da perfuração, da escarificação e isso é revolucionário. São pessoas que estão colocando em seus portfólios trabalhos de tatuagem produzidos em pele negra e isso é um grande tapa em nossas caras brancas para nos fazer acordar dessa espécie de sono cômodo nos lençóis do racismo. Embora sejamos polidos demais – no alto dos privilégios da nossa branquitude – para admitir que o completo apagamento da pele não branca em variados portfólios se dê por conta do racismo, que o completo apagamento de corpos negros em capas – e todo resto – de revistas de tatuagem se dê por conta do racismo e segue. Seguimos também com o texto.
Temos percebido o aumento significativo de profissionais lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis, queers e demais variantes de sexualidades e identidades de gênero (LGBTQ+) na comunidade da modificação corporal. Muito embora em nossa tentativa de montar uma lista – CLICAR AQUI para ler – para fomentar o trabalho de profissionais LGBTQ+ tenha recebido um tom mais tímido, com um ar de que não queremos falar sobre isso, o que nos fez pensar inclusive no assombroso lema das forças armadas norte-americana “don’t ask, don’t tell” (não pergunte, não conte). Que de tão assombroso que era foi revogado pelo presidente Barack Obama em 22 de Dezembro de 2010. Ainda que o silenciamento sobre o assunto tenha aparecido, precisamos falar sobre a presença cada vez maior – ainda bem – das pessoas trans dentro da comunidade da modificação corporal. Homens e mulheres trans e travestis, pessoas não binárias, estão se tornando profissionais da tatuagem e do piercing e olhamos para esse processo em fluxo – pequeno mas que não cessa – com profundo bem estar e encantamento, pois nos suscita a imagem de um mundo melhor do que temos agora. Sauntering que é a nossa mais nova produção em vídeo irá tratar sobre esse assunto.
Ainda que o silenciamento tenha aparecido, fomos profundamente inspirados pelo vídeo do canal Barraco da Rosa – esse texto é todo por conta disso – que tratou da temática tatuagem, espiritualidade e LGBTfobia e é sobre isso que queremos também falar em nossas últimas linhas, nos concentrando na questão da tatuagem e LGBTfobias.
Barraco da Rosa é um canal no Youtube da travesti Rosa Luz, que além de youtuber é ativista e performer. O vídeo comemora os 10 mil inscritos no canal e recebeu o título de Tatuagem, espiritualidade e LGBTfobia. O entrevistado foi o tatuador Fah Tattoo de Brasília, que é gay e faz questão de dizer que é um tatuador gay pela quebra e ruído no sistema heteronormativo que essa afirmação causa. Precisamos lembrar que até muito pouco tempo atrás pessoas não heterossexuais não conseguiam trabalho pelo simples fato de não serem heterossexuais. Precisamos lembrar que professores e professoras assumidamente gays e lésbicas eram demitidas das escolas norte-americanas na década de 70 e que hoje no Brasil existe um esforço gigantesco dos setores mais conservadores para que se combata ao que esses grupos têm chamado como Ideologia de Gênero na educação, que vai de encontro com a lógica fascista que vigorou nos Estados Unidos e, convenhamos, não apenas lá. Precisamos lembrar que hoje pessoas travestis e trans não conseguem trabalho pelo simples fato de não serem cisgêneros. Então se assumir enquanto tatuador gay, piercer gay, tatuadora lésbica, piercer lésbica, tatuadora trans, piercer trans, é importante e, não só isso, é urgente. Porque historicamente essas populações foram desumanizadas a tal ponto que para elas estava (infelizmente não podemos falar como se fosse apenas um passado, ainda está) reservado o tombo, a vala, a bala na nuca a facada no peito e as portas nas caras. Percebe? É preciso criar novos contextos para essas populações, algo que já está acontecendo, ainda bem.
Fah Tattoo durante a sua fala na entrevista comenta sobre sofrer uma homofobia velada e acredita que enquanto bicha tatuadora, seguindo as palavras da Rosa, a sua presença no meio fala sobre resistência. Nós acreditamos que a presença do Fah, tal qual de todas as pessoas não hétero e não cis, grite suave e estrondosamente em todos os ouvidos um sonoro “I will survive” em menção da canção de Gloria Gaynor. E nós sobreviveremos, pois é isso o que temos feito o tempo todo, o tempo inteiro.
Harvey Milk (1930-1978) na década de 1970 instigou a comunidade LGBT de São Francisco a assumir a não heterossexualidade – no trabalho, para os amigos, para a família – como parte de um processo de afirmação e sobrevivência. Não esqueçamos de suas palavras, queimemos os armários, nós não precisamos nos esconder.
Assista o vídeo abaixo e se inscrevam no canal de Rosa Luz.
1 thoughts on “Bicha e tatuador: conversas que precisamos ter”