Andressa Urach bifurcou a língua e nos reforçou sobre o quanto andamos para trás…

“Engraçado que tudo isso chegue agora em tantas conversas pelo menos em Nova York, e espalhe-se na imprensa, quer seja em um tom de horror (“Olha o que estão fazendo com seus corpos!”) ou com um tom de menosprezo (“Ah, são só um bando de marginais, primitivos modernos, alienados ou rejeitados por uma América que se torna cada vez mais exclusivamente high-tech”).”
Contardo Calligaris

A epígrafe utilizada, retirada de um artigo presente no livro Crônicas do individualismo cotidiano (Ática, 1996) do escritor e psicanalista Contardo Calligaris (1948-2021) foi publicada originalmente no New York Newsday em 1995.  É, 1995…

No texto, o autor pede para que deixemos de lado o escândalo hipócrita, em relação ao que as pessoas fazem com seus corpos, lembrando-nos que as modificações corporais são partes de culturas milenares, presentes em diferentes tempos e espaços.

Quase trinta anos depois, ainda não conseguimos sair dessa corrida frenética em círculo, atrás do próprio rabo, dentro de um sistema em que impera a normatividade compulsória. É um andar para trás sem fim e sem vergonha.

No contemporaneidade, a primeira bifurcação de língua documentada foi realizado na Itália em 1997 e, posteriormente, em 1998 houveram mais alguns registros, cada qual utilizando uma técnica diferente, segundo aponta o BMEzine. Fotografias, revistas e a publicação de experiências na internet constituem a documentação a que nos referimos.

O norte americano Erik Sprague, internacionalmente conhecido com  The Lizardman, foi um dos primeiros a ter a língua bipartida e partilhou a experiência em seu próprio site e no BMEzine.com. Em 2022 escrevemos AQUI no FRRRKguys sobre a comemoração de 25 anos da bifurcação de Sprague. É, 25 anos…

Bolha. Pela nossa imersão há décadas na comunidade da modificação corporal, de algum modo, tínhamos a falsa sensação de que a recepção social da bifurcação da língua já estava, de algum modo, resolvida. Com estar resolvido, não queremos dizer que a sociedade aceite bem ou tenha algum tipo de apreço, ao contrário, mas que havíamos chegado em algum tipo de indiferença porque, ela (a sociedade dominante) acredita, que é só um pequeno grupo de pessoas desviantes que o realizam. Sabem de nada…

Bastou que uma pessoa muito famosa realizasse o procedimento para que voltássemos para realidade. Foi a Andressa Urach que bifurcou a sua língua na última semana, mas poderíamos substituir por qualquer outra celebridade. A mídia genérica e uma variedade de oportunistas surgiram como um violento e barulhento tsunami e, e como já denunciava Calligaris em 1995, com um tom de horror e menosprezo. E não só…

Print de pesquisa. Foto: reprodução/Google

Demonização, patologização, criminalização e abjeção são alguns termos que vão aparecendo no tsunami da mídia genérica e de oportunistas de todo tipo. Essas pessoas precisam demonstrar o quanto estão horrorizadas com o que uma pessoa adulta decidiu fazer com o seu próprio corpo. “Agora ela foi longe demais” é o que dizem hoje sobre a Urach e é o que cansamos de ouvir ao longo desses anos todos. Quase 30 anos. A sociedade dominante é enfadonha.

Dentre as figuras da mídia genérica que se manifestaram sobre o caso, tivemos a Sônia Abrão em seu programa “A tarde é sua” que está no ar desde 2006 na Rede TV!, o que realmente deveria gerar alguma comoção pública e indignação. Em 2008, a apresentadora entrevistou ao vivo o sequestrador Lindemberg Alves que posteriormente assassinaria sua ex-namorada Eloá Pimentel (1993-2008). Com zero arrependimento sobre a sua interferência (leia-se: atrapalhar as negociações da polícia com o sequestrador e, de certa maneira, colaborar com um feminicídio), disse que faria tudo outra vez. É, mas o que choca não é a língua que lambe o gatilho, mas a outra…

Fizemos questão de mencionar a apresentadora, pois também em 2008 estivemos em seu programa falando sobre modificações corporais. Ela e sua equipe estavam com interesse em reforçar todos os estereótipos de pessoas com modificações corporais, assim como Calligaris teceu sua crítica em 1995. Nós também tínhamos um interesse muito objetivo, precisávamos divulgar nosso evento, a FRRRKcon 000.1 e, naquela época, circulamos em muitos programas de televisão, além do dela. Eles operavam da mesma maneira, com raras exceções.

A configuração toda do programa da Sônia Abrão foi desenhada para mostrar como éramos grotescos, desviantes, perversos e marginais. Durante a conversa, ao vivo no programa, falamos sobre tatuagem, piercing, implantes e, pasmem, bifurcação de língua. Fomos desconstruindo os estereótipos que eles tinham articulado para e sobre nós. Conseguimos com certa malícia, no entanto, passar uma mensagem positiva sobre modificações corporais e divulgar o que queríamos.

Trazer essa informação para cá, mencionando a apresentadora e diante desse contexto, é marcar o quanto há um interesse pessoal e capital sobre pautas, pessoas e culturas. Na nossa quebrada a gente chama isso de oportunismo barato mesmo. Assim que é…

Diante de toda repercussão barulhenta, ficamos nos perguntando, estamos em 2024 mesmo? E, logo lembramos (como se fosse possível esquecer) da ascensão da extrema-direita ao redor do mundo e do quanto no Brasil a estúpida noção de moral e bons costumes ligada com o fundamentalismo religioso e grupos fascistas tem nos feito andar velozmente para trás, sobretudo no que diz respeito ao direito de decidir sobre o próprio corpo e das instaurações das diferenças.   

Ficamos com uma preocupação também que algum ou alguma oportunista da política se aproveite do tsunami para ganhar palco e crie algum projeto de lei para criminalizar o procedimento de bifurcação da língua, assim como aconteceu com o eyeball tattooing e, o oportunista da extrema-direita, que fez exatamente isso após assistir uma “reportagem” da Rede Record. O que nos resta por agora é acompanhar os desdobramentos.

As línguas mais perigosas não são as bipartidas, mas aquelas que, orgulhosas de suas ignorâncias, hipocrisias e mediocridades vociferam verborragias vis sobre culturas que visivelmente não entendem e não querem entender, porque elas lucram com a idiocracia que as retroalimentam.

Eles que andem para trás. Eles que sigam em sua caminhada em reverso. Eles que sigam normais. Nós vamos pelo avesso, e assim, seguiremos caminhando para frente e no front na luta pela defesa pelo direito de decidir sobre o próprio corpo. Instaurando estranhezas. Celebrando com as nossas línguas bífidas a nossa recusa em andar para trás.

Nota 1: Não entramos em detalhes sobre a Andressa Urach em si porque acreditamos que a repercussão seria a mesma diante de qualquer outra celebridade. O problema não é a celebridade, mas o procedimento. Andressa não precisa que uma plataforma tão pequena como a nossa a defenda de absolutamente nada. Ela também está rentabilizando e lucrando com a repercussão.

Nota 2: Nunca confiem na mídia genérica. Tenham malícia para usá-la. Não permitam que ela use vocês.