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“Meu dever ético, enquanto um dos sujeitos de uma prática impossivelmente neutra – a educativa – é exprimir o meu respeito às diferenças de ideias e posições. Meu respeito até mesmo às posições antagônicas às minhas, que combato com seriedade e paixão.”
Paulo Freire
Os tempos são bastante duros. Estávamos indo para uma convenção de tatuagem no Sul do país, era noite e chovia na estrada, eis que no rádio passava uma entrevista com a professora Lola Aronovich, contando sobre as ameaças de estupro e morte que vem sofrendo. Você pode CLICAR AQUI para ouvir a entrevista. Naquele momento não ouvíamos mais o barulho da estrada e nem da chuva que caia sobre o teto do carro e vidros. Ouvíamos com muita atenção cada palavra daquela conversa pesada. Fomos tomados por uma sensação ruim de tristeza no peito com um ar de revolta. Lembramos do caso de 1989 da Escola Politécnica da Universidade de Montreal, Canadá, em que um estudante de engenharia, Marc Lépine, entrou na universidade e assassinou todas as mulheres que encontrou, somando um total de 14 mortes e 14 pessoas feridas, sendo 10 delas mulheres. O massacre que pode ser visto no filme Polytechnique (2002), teve motivação declarada de misoginia, Marc disse em sua carta de suicídio que mataria todas as feministas da universidade. Com a situação exposta por Lola e essas memórias, falamos desse ódio misógino que insiste em dominar a nossa sociedade, lamentamos com muito pesar essa situação hedionda.
Pensamos ainda sobre o caso recente do ENEM, do incomodo causado pela presença de Beauvoir e da redação sobre violência contra a mulher, que foi entendido por muitos como sendo unicamente uma pauta feminista, o que é uma aberração cognitiva sem tamanho e estreiteza de leitura crítica de mundo, para não dizer do mau-caratismo inerente de alguns. Em que mundo essas pessoas estão vivendo?
No dia seguinte acompanhamos no grupo Reflexões sobre as modificações corporais o caso em que uma mulher nos trouxe, o tatuador Irineo Waissman havia feito em um cliente uma tatuagem em que a presidenta do Brasil aparecia fazendo sexo oral. A jovem trazia o caso e um desabafo com a mensagem “apenas nunca sejam esses homens”. Nós endossamos esse coro no ato e o pedido vem agora e em todas as outras vezes que falamos sobre uma vida boa para todo mundo.
Ao vermos o diálogo que se erguia naquela discussão pensamos na falta que faz esse distanciamento com as leituras sobre os feminismos e com as histórias das lutas raciais e LGBT e dos direitos humanos de modo geral. Pensamos na falta que faz as aulas de história e filosofia. Pensamos até de modo derrotista que as pessoas não estão lendo o que escrevemos no FRRRKguys, o que estamos tentando dizer nesses dez anos, ou que então não estamos sendo claros o suficiente. Ter nos deparados com aquele sarcasmo violento e carente de crítica não nos desceu nada bem. Não bastando, fomos conhecer as justificativas do tatuador de Uberlândia, Minas Gerais, uma delas era que:
“Só queriamos representar aquela velha expressão ” chupa dilma”, foi isso que o cliente revoltado com o nosso sistema pediu.” (sic)
A noção de que o sistema político brasileiro seja apenas uma única figura – e curiosamente de uma mulher – é rasa demais. A crítica que se tentou fazer é, além de tudo, desconectada de uma história política que não começou agora, por outro lado, está conectada diretamente com o machismo, sexismo e falocentrismo que também não é novidade. Com a noção infante e sexista de que tudo se resolve com o falo. Como se o pênis fosse uma espécie de sacra chave mestra que pode abrir todas as portas e resolver todos os problemas, se crítica o sistema, reproduzindo um discurso ultrajante. Nada disso faz sentido.
No grupo as opiniões começaram com uma indignação e, para nossa triste surpresa, seguida da aprovação e uma confusão bastante conveniente entre liberdade de expressão e autonomia do corpo. Sem mencionar o ar de deboche típico de quem nunca soube e nunca saberá e nem tem empatia para saber o que é ser mulher em uma sociedade como a nossa. Falamos em confusão conveniente, pois é a mesma desculpa utilizada por pastores, pseudos humoristas e intelectuais para justificar as maiores atrocidades e violências contra certos grupos de pessoas. Nesse sentido, a linha que se seguiu nos diálogos foi a mesma.
O tatuador está fazendo apenas o trabalho dele
“Ao redor de nós, tudo nos é hostil. Por cima, sucedem-se maldosas nuvens para tirar-nos o sol; por todos os lados, circunda-nos a esquálida floresta de ferro retorcido. Nunca vemos seus limites, mas sentimos, ao redor, a presença má do arame farpado que nos segrega do mundo. E nos andaimes, nos trens manobrando, nas estradas, nas escavações, nos escritórios, homens e homens, escravos e patrões, escravos eles também, o medo impede uns e o ódio os outros; qualquer outra força emudece. Todos são, para nós, inimigos ou rivais.”
Primo Levi n. 174517, É isto um homem?
Usaremos um caso extremo para iniciar a discussão sobre o “apenas cumprindo ordens”, mas que pode e deve ser gradativamente diluído e pensado em diferentes espaços e tempos, inclusive no ato e escolha de um profissional da tatuagem. Vamos ao caso do alemão Adolf Eichmann, político e militar da Alemanha nazista, que exterminou milhares de judeus nos campos de concentração, foi preso e julgado em Israel, então, condenado à morte em 15 de Dezembro de 1961. Durante o julgamento ficou claro que ele cometeu tudo o que cometeu “apenas por cumprir ordens“. Através desse famoso julgamento a filósofa Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, indicando que existem pessoas que podem cometer as maiores atrocidades com a justificativa de que estejam apenas cumprindo as regras do sistema ao qual pertencem. Como disse Vitor Knijnik no texto meu ‘Meu bem, meu mal”:
“Para esses indivíduos, torturas, execuções ou a prática do mal não são racionalizadas nem suas consequências são medidas. Basta que as ordens para executar as barbaridades venham de instâncias superiores. “Estou apenas cumprindo ordens” é uma das frases mais vis que o ser humano pode dizer. Isso e “não é você, o problema sou eu”.”
A expressão “apenas cumprindo ordens” também foi bastante utilizada pelos militares torturadores ao fim da Ditadura civil e militar brasileira e demais países latino-americanos. Assim como hoje o é pela polícia militar em algumas situações. Veja, uma pessoa pode sair para trabalhar, assassinar dezenas, centenas de pessoas – pois está “apenas cumprindo ordens” – e ao fim do seu turno, retorna para o seu sagrado lar, de sua família tradicional e de homem de bem. Sem remorso e sem culpa, pois a sua responsabilidade é jogada para o outro que não ele. A noção e tentativa de se eximir da responsabilidade é em si uma crueldade imensurável. Arendt já nos sinalizada que o problema com Eichmann “era precisamente haver tantos como ele, e o fato de que muitos não eram nem perversos e nem sádicos, o fato de que eram e o ainda são, terrível e aterradoramente normais”.
Ora, como muito bem nos pontua a filósofa Marcia Tiburi, “a banalidade do mal é, portanto, uma característica de uma cultura carente de pensamento crítico” e enfatiza que nesse esquema qualquer pessoa “pode exercer a negação do outro e de si mesmo”. É sabido e já analisado por várias pessoas estudiosas das modificações corporais, a exemplo do professor Camilo Braz em sua dissertação de mestrado de 2006, que esse é um meio que apesar de subverter algumas normas estéticas (e muitas vezes só isso) é reprodutor de tantas outras normas e violências, como o sexismo, machismo, racismo, LGBTfobia, especismo, capacitismo, etarismo e a lista segue sem fim. Por exemplo, têm muitos profissionais com inclinações nazifascistas e isso não é velado, diga-se de passagem, é uma violência explícita e que não é tratada e combatida com a seriedade que deveria. Precisamos falar sobre isso!
Sendo a nossa sociedade patriarcal e machista, esse meio acaba por reproduzir sem muitos parâmetros críticos essas práticas, não apenas cumprindo ordens, mas por se beneficiarem com esse sistema nefasto, pecam pela omissão ou pelo discurso eloquente de defesa disso tudo. Com isso, o fato de um tatuador fazer um trabalho – e não só isso, fazer questão de divulga-lo em seu portfólio– , seja da nossa presidenta fazendo sexo oral com a única intenção de ofende-la e agredir sua dignidade ou seja de um soldado da SS, esse profissional precisa assumir a responsabilidade do seu ato. A sua responsabilidade que é além da técnica de se fazer um bom traço, mas deve também ser moral e ética.
Vimos uma primeira justificativa assustadora do tatuador em que ele se mostrava pouco preocupado com as críticas, pois trabalhava demais e não teria tempo para isso, segundo ele dizia. Depois o vimos questionando a hipocrisia de quem se ofendeu com as imagens. Tão ruim quanto as tatuagens, e não estou aqui falando sobre técnica, e o fato da divulgação com uma tentativa torpe de se ausentar da responsabilidade da situação, foi a primeira justificativa pública do profissional. Mas, ao que parece houve tempo para repensar a vida e mudar de opinião, hoje vimos uma nova publicação em que ele reconhecia o erro, se desculpava e dizia que iria se informar mais sobre todas essas questões. Enquanto alguns berravam que essa atitude do tatuador não era para atender aos pedidos “das vagabundas” (sic), ou seja, o fato de uma mulher se sentir insultada por ser historicamente tratada como coisa, desse o direito de alguém ainda a insultá-la mais uma vez. Pois é…
Não é preciso muito esforço para se inteirar sobre esses assuntos. Sobre o nazismo, bem, acho que não precisamos dizer que não é correto ser conivente com uma ideologia que matou e ainda mata milhares de pessoas. Inclusive já que falamos sobre tatuagem e nazismo, recomendo a leitura do livro ‘As nazi tatuagens’ da professora Célia Maria Antonacci Ramos. Sobre a violência de gênero, os números assustadores de mulheres sendo agredidas, estupradas e mortas, todos os dias e todas as horas é um indicativo de que é preciso mais senso crítico e empatia. Outro indicativo é o deputado pastor Eduardo Cunha explicitamente prejudicando a vida das mulheres e buscando – através do poder do Estado e da religião – cada vez mais o controle de seus corpos, subjetividades e vidas. O assédio e abuso sexual também não pode ser esquecido. A exploração sexual, a objetificação, a baixa remuneração e tantas outras questões, não podem ser deixadas de lado ou meramente relativizadas. Um profissional das modificações corporais não pode estar ausente dessas discussões todas. Não há imparcialidade, e parafraseando Desmond Tutu, “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”.
Por fim, no Brasil – e aqui retornando a noção da banalidade do mal – esta se realiza e está posta na corrupção endêmica, na LGBTfobia institucionalizada, no assassinato de todos aqueles que não têm poder, no extermínio da população negra, na cultura do estupro, no feminicídio e toda violência contra a mulher, na desigualdade social, na segregação espacial. A banalidade do mal está naquele que vi tudo isso e faz piada. A banalidade do mal está posta nas bocas e ações das bancadas da bala, da bíblia e do boi. Onde não há vencedores e como em uma guerra, somos todos os perdedores.
Os profissionais das modificações corporais, o que abarca tatuadoras e tatuadores, precisam estar atentos ao mundo em que vivem, usarem a sensibilidade crítica e fazer o seu trabalho de modo ético e responsável. Isso não é apenas sobre fazer um bom traço, mas o que esse traço pode dizer sobre você, enquanto profissional e pessoa. Pense nisso.
Vamos parar de cuidar da tatuagem alheia e do corpo alheio
“É por isso, por essa permissividade, que temos meninas e mulheres sendo diariamente violentadas, invadidas, abusadas e mortas em nosso país, sem que haja punição dos culpados. Há uma impunidade crônica nos crimes de violência contra a mulher, como se a mulher fosse uma posse, a qual o homem pode ter acesso a qualquer momento.”
Senadora Gleisi Hoffmann
A frase que utilizamos como título para esse trecho se repetiu bastante no grupo Reflexões das modificações corporais e é bastante problemática em nosso ponto de vista. Ela se apropria distorcendo a noção da liberdade de expressão, com o desejo de opressão, isto é, reprodução e produção de violência. No mais essa proposição sugere indiferença e omissão e falaremos mais adiante sobre isso.
O filme Irreversível (2002) do argentino Gaspar Noé, traz uma cena de violência sexual, no caso um estupro, que dura 9 minutos. Não é fácil assistir, não é fácil conviver sabendo que essa é uma realidade que escapa a ficção e que em alguns casos é muito pior do que aquilo que foi mostrado no filme e, falo desse título e dessa cena, pois enquanto acontece o estupro, uma pessoa (que poderia ser uma testemunha quiçá heroica) vai passar pela cena da violência e ao ver o que está acontecendo, apenas foge e deixa a mulher sendo violentada e entregue ao próprio azar. A presença dessa testemunha que se ausenta é barulhenta e muito pontual e fala muito sobre a nossa sociedade, que é cruel e é covarde. Saindo da ficção do filme e passando para a realidade, através dessa ação do se ausentar, pensamos nas pessoas que se calaram ou se omitiram ao saber dos porões da tortura da ditadura, pensamos nas pessoas que hoje são coniventes e omissas com práticas de trabalho análogas à escravidão, pensamos nas pessoas que são coniventes ou omissas com agressores, abusadores e violentadores de mulheres, crianças, animais… Pensamos nas pessoas que foram omissas e coniventes por quase um século com o extermínio de milhares de pessoas no Hospício de Barbacena, Minas Gerais. Pensamos nas pessoas que são omissas e coniventes com as chacinas que acontecem nos morros e nas periferias brasileiras. Pensamos nas pessoas que são omissas e coniventes com os assassinatos diretos ou indiretos de milhares de pessoas LGBT.
Dito isso, é preciso sim “cuidar da tatuagem alheia” – se esta for a expressão que escolheram empregar -, quando ela coloca em risco a segurança e vida de grupos que historicamente foram e são oprimidos e violentados física e simbolicamente. Assim como é preciso denunciar aos órgãos responsáveis os neonazistas, os racistas, os agressores de mulheres, os LGBTfóbicos, os pedófilos, os estupradores e pessoas que maltratam os animais. E se optamos em assistir passivamente todas essas práticas violentas e abusivas, como se não nos dissesse respeito, somos também responsáveis por essa escolha e manutenção para que tudo isso siga existindo. Entende o ponto que queremos chegar?
A expressão “meu corpo, minhas regras” é deveras importante, no entanto, se as suas regras colocam em risco a segurança e vida de pessoas ou sugerem o ódio e extermínio de grupos, é preciso não só rever o seu corpo e as suas regras, mas a forma que você emprega o corpo que você é, no mundo que todos nós co-habitamos.
Para concluir, ao que parece o tatuador desse episódio está revendo a sua postura e seus privilégios enquanto homem. Poderia não ser assim, e é assustador pensar que ele teria muitos clientes com inclinações nazifascistas para tatuar, além dos machistas e toda gente que abraça a banalidade do mal sem o menor peso na consciência. Bem, somos responsáveis em construir as nossas próprias histórias e podemos inclusive escolher o lado que queremos estar e com o que seremos relacionados no passado, no presente e no futuro. Não deve ser muito legal estar relacionado com as piores atrocidades humanas, mas enfim, é um caminho a ser seguido, para quem assim o quiser. Leonilson já avisava, “para quem comprou a verdade, o louro, o cetro e o tombo”. Oxalá!
REFERÊNCIAS
Homem tatua imagem ofensiva à Dilma e gera discussão
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/11/homem-tatua-imagem-ofensiva-a-dilma-e-gera-discussao.html
Em tatuagem, Dilma é retrata fazendo sexo oral
http://www.alagoas24horas.com.br/932179/em-tatuagem-dilma-e-retratada-fazendo-sexo-oral/
Meu bem, meu mal
http://www.cartacapital.com.br/revista/768/meu-bem-meu-mal-4790.html
Hannah Arendt
http://revistacult.uol.com.br/home/2013/09/hanna-arendt/
‘Recebo ameaças de estupro, tortura e morte’, conta blogueira feminista
http://cbn.globoradio.globo.com/programas/cbn-noite-total/2015/11/05/RECEBO-AMEACAS-DE-ESTUPRO-TORTURA-E-MORTE-CONTA-BLOGUEIRA-FEMINISTA.htm
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