Durante a semana o doutorando em psicologia pela Universidade de São Paulo – USP, Andreone Medrado, publicou um texto no Instagram intitulado “A autorização do corpo cis”.
O autor discorre sua reflexão partindo da questão:
“Muito se questiona a necessidade de pessoas Transgênero fazerem cirurgias para se “adequarem” a um perfil de gênero socialmente estereotipado. Mas já se perguntaram quantas pessoas Cisgênero fazem procedimentos estéticos para não conviverem com um corpo com o qual nunca se identificaram?”
A pergunta é necessária e fundamental para que possamos pensar os corpos que são mais aceitáveis e mais matáveis, dentro da configuração de sistema que temos. No entanto, temos problemas tantos quanto o autor afirma que “o corpo Cis como o único válido a ser modificado: mas modificado dentro de um limite”. Problemas que fazem com que as fotos utilizadas para composição da ideia coloquem todas as modificações corporais dentro de um mesmo balaio e o próprio apontamento feito pelo autor “mas modificado dentro de um limite” ocupe um lugar da contradição e incoerência.
As fotos escolhidas são em si um grande problema. Elas são normalmente utilizadas por canais ultra sensacionalistas que colaboram com a nossa desumanização. Ainda, temos duas pessoas trans ali representadas, uma delas antes da transição, sabe como isso é violento? Pegar a imagem de uma pessoa trans antes da transição e jogar numa crítica sobre a autorização das pessoas cis a se modificarem, me parece bastante equivocado. É errado, sobretudo, utilizar imagem de pessoas sem a autorização delas, deixa essa tática sem ética para a extrema-direita.
Então, nos perguntamos: qual é a autorização do corpo freak? No sentido da validade de uma existência digna. E aqui vai caminhar a nossa reflexão em resposta e diálogo direcionado ao Medrado.
Primeiro ponto, a comunidade freak é ainda apagada e tornada invisível para todos os movimentos sociais. Ninguém – exceto nós – conhece nossas particularidades enquanto comunidade e, dentro disso, nossas pautas, processos de violência, estigmatização e precarização da vida. Tão precarizada que não há – sobre nós – dados sobre escolarização, saúde e expectativa de vida, por exemplo. Nós sabemos – por conta da nossa construção de rede – da baixa escolarização da nossa gente, da recusa do mercado de trabalho formal (o desafio de acessar e permanecer), da dificuldade do acesso ao sistema de saúde (e das situações vexatórias que passamos) e da baixa expectativa de vida que temos, considerando o alto número de suicídio entre nossa gente. Nós também estamos sendo suicidadas, suicidados e suicidades e, somente nós choramos os nossos corpos esquisitos que tombam tão jovens. E nem depois que morremos, temos o direito de ter um velório digno. Nos maquiam e nos fantasiam no caixão – quando conseguimos pagar por um – daquilo que nunca fomos e seríamos no sistema da normatividade compulsória.
Os nossos procedimentos não são autorizados, ao contrário, são criminalizados, patologizados e demonizados. Temos pessoas sendo presas ou com medo de serem presas por conta dos nossos procedimentos. Temos projeto de lei que busca tornar crime nossas práticas. Inclusive, quando nos organizamos para lutar contra políticos fascistas que nos querem no cárcere, buscamos dialogar com movimentos progressistas (inclusive ativistas LGBTQIA+), buscamos conseguir algum tipo de apoio, mas não temos resposta, o que é simbólico. É como se a criminalização dos usos do corpo não fosse relevante ou que só dissesse respeito somente para nós.
Inegavelmente há a demonização do corpo trans (sinto na pele), mas não podemos promover esse debate e essa reflexão sobre quais corpos são autorizados a existir de um modo que não seja interseccional. O corpo negro, o corpo indígena ou o corpo com deficiência, por exemplo, não precisam de procedimento algum para não ter – de antemão – o direito de existir dentro do sistema que temos.
O corpo freak está longe – léguas e léguas de distância – de estar em uma situação de conforto tal qual indica o autor. Nós não temos o direito de nos modificar ao nosso “bel prazer”. Nós ainda temos uma cidadania precária. E ainda assim, duelamos no sistema da normatividade compulsória fazendo do nosso corpo campo de batalha. Na guerra que é existir, perdemos muito. Algumas vezes perdemos coisas e muitas vezes perdemos pessoas, mas, o que não abrimos mão e não negociamos é o direito de existir da forma que nos sentimos mais confortáveis. E não, a gente não precisa – e nem deseja – algum tipo de autorização pra que isso ocorra. “Nós queremos dançar ao som da destruição da normatividade compulsória”.
Por fim é isso, se você se propõe a falar sobre nós sem nós, minimamente conheça um pouco da nossa história. Não é porque você não a conhece que ela não existe.