Dez anos sem Enzo Sato fisicamente entre nós… Mas ele continua aqui.

“É a potência encantatória das narrativas, elas ressuscitam  presenças e chamam com isso outras histórias. É a erótica das versões, o que faz seu modo de ser como versões. Não apenas porque, como lembrava Roland Barthes sobre o erotismo dos corpos, ao deixar entrever, elas são a encenação do aparecimento-desaparecimento, mas principalmente, porque elas chamam sempre outras, elas são desejo de continuação, desejo de outras histórias, desejo de vitalidade, encantação. Essas histórias não encantam o mundo, como se diz com frequência, elas resistem a desanimação. Elas não lutam contra a ausência, mas compõem com a presença.”
Vinciane Despret – Um brinde aos mortos: histórias daqueles que ficam

“As pessoas que você ama se tornam fantasmas dentro de você e assim você as mantém vivas.”
Robert Montgomery

Enzo Sato (1987-2014), dia 26 de Setembro de 2024 se completa dez anos de sua precoce partida. Aqui é uma carta de amor e celebração de sua existência. Obrigada por existir em minha vida. Assim, no presente ainda.

Diante da primeira década sem o Enzo Sato fisicamente entre nós, eu o celebro escrevendo mais uma história, na posição de quem ainda ficou. Ele se foi. Eu fiquei. Dez anos se passaram e a areia do tempo segue escorrendo pela ampulheta.

Montagem feita por ele mesmo e publicada em seu Tumblr.

A nós – que aqui ainda estamos – cabe oferecer “mais” existência aos nossos mortos, como sugere Vinciane Despret, filósofa da ciência e psicóloga belga. Ah! Mas é esquisito demais pensar no Enzo morto quando ele é tão vivo para mim e talvez somente eu saiba o quanto.

Ainda antes de entrar em contato com a obra da Despret, de algum modo e nos meus próprios termos, tinha estabelecido dentro de mim a ideia de oferecer “mais” existência ao Enzo, o meu Anzol, como carinhosamente o chamava. Quando publiquei em 2015 o livro a Modificação Corporal no Brasil – 1980-1990 lá estava uma dedicatória para ele, além das fotografias de seus trabalhos com modificações corporais. Quando da publicação da 2ª edição em 2023, tudo foi mantido como tinha que ser. Enzo Sato estava presente.

Dia de suspensão na praça. Foto: Alexandra Anami, 2012.

Houve também a performance E.volua que realizei dedicada para ele, na ocasião do I Congresso do Grupo de Estudos de Piercing – GEP em 2017. Um trecho pode ser vista no Youtube.

A performance foi criada para homenagear a vida e a obra do body piercer brasileiro, Enzo Sato, que em sua breve jornada e carreira, trabalhou duramente para elevar o nível do body piercing nacional. Nesse momento, em que pela primeira vez, suas grandes referências do piercing estavam juntas, falar sobre Enzo Sato era ainda dar continuidade ao que ele acreditava enquanto profissional. E colocá-lo presente entre nós.

Escrevi algumas linhas sobre a performance que foram utilizadas na divulgação e na ação em si:

“O mundo é uma ostra agora.
É também um grão.
Queria que você estivesse aqui. Tanto.
Tanto que trago você, a sua memória, até aqui. Agora.
Tanto, que você está.
Presente!
Estico o fio da vida.
Conto sobre a sua história.
Provoco.
Invoco.
Invólucro bonito de um sonho que era seu. Meu.
Nosso.
Eu vou seguir você nas sombras.
E é na luz, na claridade, da eternidade, que vamos habitar.
Acreditar sempre.
Como você sempre disse.
E.volua!”

Performance “E.volua”. Foto: Rogério Gomes, 2017.

E não parou lá e nem vai parar enquanto eu estiver viva.

Enquanto eu escrevia a minha dissertação de monstrado, ele invadia os meus pensamentos constantemente, como a boa companhia que sempre foi. Enzo Sato, presente. E dançando entre as 218 páginas, sua existência está ali entre fotografias, palavras, afetos, abraços, memórias e presença. E na defesa, lá estava uma rosa branca ocupando uma das cadeiras. Presente, sempre presente.

Brinde de açaí pré-performance em 2011.
Em 2012 no backstage da performance “Inhale, Exhale” em que ele me perfurou.

Eu acredito que precisamos cuidar dos nossos mortos tanto quando cuidamos das pessoas que seguem vivas conosco. Sobretudo para nós freaks, com a consciência de que o nosso tempo é outro e, infelizmente, mais curto. Não tinha que ser assim, mas tem sido e isso dói. Então, quando homenageamos e emanamos amor para uma pessoa freak encantada, não só cuidamos de uma pessoa que foi e é amada, que não será esquecida e nem substituída, mas realizamos o cuidado em igual medida de uma história de uma comunidade. Como costumo dizer, cuidar da nossa gente e cultura é urgente, diante da desimportância que temos para o mundo normativo.

Enzo suspendendo a minha versão de pano. Foto: Pri Nunes, 2013.

Enzo Sato foi um body piercer a frente do seu tempo, um artista sensível e uma pessoa encantadora e iluminada. Uma pessoa a frente do seu tempo, é verdade, e que agora transita em múltiplas temporalidades, sonhos, imaginações e fabulações. E é habitante querido do meu coração. E tenho certeza, com profunda convicção, que Enzo está abraçado no mais genuíno e caloroso amor. Acreditar sempre, acreditar sempre, ele dizia e carregava tatuado em cima de suas clavículas. Ironicamente a tatuagem foi feita com o André Cruz, na madrugada depois da performance “Inhale, Exhale” de 2012. Que dia! Que noite!

“Acreditar sempre” com um coração na garganta e outro gigante no peito.

“O amor é a resposta não importa qual seja a questão” era a tatuagem que marcava todo seu rosto e que hoje preenche toda a minha mão direita e queimada. Curiosamente é uma das poucas tatuagens que as pessoas querem ver, ler e saber mais a respeito. É sempre assim, vem a pergunta, o meu coração aperta (eu vou conseguir contar sem chorar?) e depois esquenta (o amor é tão maior) e eis que chega mais uma oportunidade de falar sobre o Anzo e sobre o amor. É preciso falar sobre o amor.

Foto da Expo Corpos Perfurados em 2018 na Tattoo Week São Paulo.

Enzo Sato se foi, cedo demais, com apenas 27 anos, o que me gera consternação e revolta nos dias mais cinzas e sombrios, mas ele continua aqui e quando penso assim, o azul e a luz reaparece e resplandece. Eu amava quando ele vestia azul e propositalmente, quase sempre que iríamos nos encontrar lá estava a sua clássica regata azul cobrindo seu corpo rabiscado ou cobrindo uma outra camiseta. Eu o elogiava, ele sorria envergonhado e a gente se abraçava ternamente, como se a vida nunca fosse ter fim. Que falta me faz o seu abraço, Anzo.

Enzo perfurando minha Medusa em 2012.

Que bom que tive tempo de abraça-lo tantas vezes e segurar a sua mão em nossas viagens Brasil afora.

Nas Estradas de Curitiba para São Paulo em 2012

Que bom que realizamos tantas performances juntes e desfrutamos do êxtase que preenchia nossos espíritos ao final de cada trabalho.

Escarificando para performance “Indiferença, não mais” em 2012. Foto: Alexandre Anami
Escarificando para tese “Corpos (Con)Sentidos” em 2013. Foto: Pri Nunes

Que bom que rimos tanto e pelas mais variadas razões, inclusive por nada.

A praia… O mar… 2012.

Que bom que que você foi e é minha companhia nas travessias, nas esperas dos ônibus, nas ondas do mar e na expansão da vida.

A praia… O mar… O amor… 2012.
A praia… O mar… O amor… 2012.

Hoje, dez anos depois de sua partida, sinto que estou muito mais próxima de ti. O que não me assusta em nada, ao contrário, me traz paz.

Paz, paz, paz…
De algum modo bonito a gente se completava, inclusive nas tatuagens.

Para quem sempre preencheu o meu coração de amor. Para quem sempre me fez acreditar, apesar da configuração de mundo que temos. Para quem roubava o meu celular para tirar selfie e colocar de papel de parede. Para quem o olho tremia quando falava sério. Para quem segue comigo e que vai continuar me preenchendo enquanto eu respirar, emano o meu mais puro e sagrado amor. Um amor de agradecimento pelo pouco e precioso tempo que vivemos e tivemos. Um amor de agradecimento por todas as suas contribuições para modificação, arte e suspensão corporal. Um amor de agradecimento pela beleza, sabedoria e generosidade que a sua existência trouxe ao mundo como um relâmpago reluzente.

“Tudo que é sólido desmancha no ar” performance em 2012.
“Tudo que é sólido desmancha no ar” performance em 2012.

Escrevo e releio cada linha desse texto e sinto o meu rosto molhado de lágrimas. E é preciso chorar mesmo diante da saudade de quem amamos. Revisito nossas fotografias e as memórias acendem e me aquecem. Sorrio. Choro. Agradeço. Ascendo. Que presente foi ter vivido no mesmo tempo que você.

Eu te amo para sempre, Anzol. Buscar te oferecer “mais” existência é o mínimo que posso fazer diante da grandeza do impacto da transformação que a sua vida gerou na minha. Obrigada por tudo e seguimos juntes aqui e, quando for a minha hora, do lado de lá. Saudades, muitas saudades.