Em março iniciamos o que pretende ser uma sequência de textos que abordam questões que se relacionam com a maternidade e modificações corporais. Em nosso primeiro texto, tratamos da história de Katia Marcolino que viveu a experiência de se tornar mãe, com modificações corporais diversas, no começo dos anos 2000. Você pode CLICAR AQUI para ler.
O texto de hoje vamos falar sobre maternidade e modificações corporais em 2019, quase duas décadas depois da primeira história e análise. Um tempo em que a comunidade freak se alargou para tantos lados e ao mesmo tempo vivemos retrocessos políticos e culturais no que tangem as autonomias, liberdades individuais e o direito de uso do próprio corpo. Considerando a criminalização de técnicas de modificações corporais – e seus praticantes – ao redor do mundo.
Afirmamos que a comunidade se alargou porque hoje falamos de indústria do piercing e indústria da tatuagem, sabemos o grande capital que essas profissões tem gerado e girado ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Algo que já havia sido percebido pelo cronista João do Rio lá em 1908 na obra de domínio público chamada A alma encantadora das ruas, quando o autor analisou o ofício dos tatuadores. Algo tratado por Andre Meyer em sua biografia Lindo de Doer (2011) ao falar do dinheiro que fez com o piercing.
Precisamos inclusive pensar sobre o quanto essas profissões têm se voltado para atender o sistema capitalista, o que pode abrir janela para uma outra série de textos e reflexões. Agora, aqui, nos concentraremos na maternidade.
A história de hoje é de Kali, artista e tatuadora que vive em Jataí, interior sudoeste de Goiás, que em 07 de Abril de 2019 se tornava mãe. Uma mãe com o corpo com muitas tatuagens, piercings, alargadores e com um histórico bonito na prática de suspensão corporal.
Compartilharemos abaixo o relato sobre o processo de maternidade de Kali enquanto uma mulher freak:
“Ser mãe nunca foi um sonho pra mim, tenho consciência que a heterossexualidade é compulsória e a maternidade algo imposto desde pequenas as mulheres e sempre tentei ir contra esses moldes, quando eu me vi grávida, me vi dentro de uma incoerência, mas no contexto em que eu estava vivendo (um parceiro firmeza, um lugar pra morar), assumi aquela situação e tentei levá-la da maneira mais leve possível, sem me culpar ou nada parecido, me inspirando em outras mulheres incríveis que também eram mães.
Durante esses nove meses vivenciei varias situações no mínimo desagradáveis, desde as expressões de espanto das pessoas no posto de saúde a cada consulta do pré natal, até um fato que realmente me abalou, quando durante uma consulta odontológica a dentista, que alias sempre me tratou com certo desdém, me aplicou uma anestesia sem me avisar previamente, eu me assustei com a injeção inesperada e ela logo soltou “mas você com esse tanto de tatuagem tá com medo de uma anestesia?” eu fiquei sem reação e acabei não denunciando, mas fui pra casa me sentindo péssima e pensando que se com a dentista foi assim imagina como poderia ser traumático pra mim ter um parto hospitalar com um médico homem.“
“Foi ai que eu comecei a me movimentar em busca de um parto humanizado, busquei muita informação em grupos, blogs, zines e conversando com amigas sobre suas experiencias, mas infelizmente na cidade em que eu estava morando não tinha essa possibilidade nem no hospital público e nem no particular e um parto domiciliar só seria possível em Goiânia, mas o preço também era inacessível. Eu me vi em desespero, já imaginando o pior, uma eminente vítima de violência obstétrica. Uma luz se acendeu no final do túnel quando em um grupo de gestantes do whatsapp que eu participava, alguém mencionou uma doula de uma cidade vizinha e quando entrei em contato ela me indicou uma equipe de parto domiciliar que atendia naquela região.
Fui buscar mais sobre essa equipe e logo senti que ia dar certo, conversei com a Ângela (a parteira) e rapidamente me senti acolhida, a dificuldade seria a parte financeira, já que com a gravidez eu tive que diminuir minha carga de trabalho até o ponto em que eu tive que parar de tatuar. Pois bem, iniciamos uma vakinha online com a intenção de arrecadar a quantia necessária para pagar a equipe de parto domiciliar e a nossa surpresa foi que muitas pessoas nos ajudaram, amigxs, amigxs de amigxs e especialmente minha mãe e minha irmã que me apoiaram desde o início enquanto tantas outras pessoas inclusive familiares diziam que era apenas um capricho meu não querer sofrer violência obstétrica, já que todas as mulheres passam por isso e é “normal”.“
“Tive o privilégio de ter um parto domiciliar humanizado, tranquilo e aconchegante. Eu digo privilégio pois de fato é e quando penso que a maioria das mulheres dão a luz em meio a circunstâncias violentas e desumanas, em especial as mulheres negras e indígenas, e que muitas nem ao menos conseguem identificar tais violências, sinto uma tristeza profunda e penso que a maneira que eu tenho de me solidarizar a elas é falar sobre o tema e incentivá-las a lutar com unhas e dentes, literalmente se necessário, para terem seu momento respeitado. Ainda mais se considerarmos a atual situação política em que vivemos, aonde recentemente com o apoio do governo federal o Ministério da Saúde soltou uma nota com a intenção de abolir o uso do termo violência obstétrica na tentativa de naturalizar certos procedimentos desnecessários adotados por médicos explicitamente misóginos e desatualizados.”
“Nesse primeiro mês de vida pude me deleitar com este pequeno ser que eu chamo de filho, mas também pude sentir algumas amarguras da maternidade, a fase do puerpério que é de suma importância e quase sempre negligenciada, todos os olhares se voltam para o recém chegado e a mãe fica ali ouvindo seus sentimentos e suas vontades questionadas a todo tempo pela sua inexperiência e muitas vezes essa mulher que esta vulnerável pela gigantesca transformação que acabou de passar não consegue se impor e dar voz as suas angústias.
Quanto mulher modificada sempre tive que lidar com os olhares de reprovação em vários ambientes, agora com um bebê eu sinto isso ainda mais forte, como se fosse um afronte uma mãe ser assim tão diferente, tento não me importar com isso, mas as vezes tenho que retrucar com uma cara feia e um “perdeu alguma coisa?”. Meu filho nasceu dia 07 de abril de 2019 e para a surpresa de todxs ele não nasceu tatuado.”
O depoimento de Kali nos faz perceber que embora quase duas décadas tenham passado – da experiência de Kátia – e que, durante esse tempo, vivemos o auge da informatização, internet… Pouca coisa mudou no que diz respeito a aceitação das mães com modificações corporais. Como antes, ainda paira o olhar de reprovação, rejeição, condenação e desprezo. Como se uma mulher com modificações corporais não pudesse ter o direito – se assim o desejar – de viver a maternidade.
O Brasil de 2019 – governado por Bolsonaros, militares, pastores e terra-planistas – colabora com a construção de uma narrativa que pretende seguir violando os direitos humanos básicos dos corpos e subjetividades dissidentes. Desrespeitando, inclusive, o direito de uma maternidade segura, como o depoimento de Kali cita sobre a retirada da expressão violência obstétrica, proposta pelo Governo, considerada “inadequada” pelo Ministério da Saúde.
Dentro desse sistema de necropolítica, os corpos das mulheres estão sendo alvos de constantes ataques. Simone de Beauvoir já nos avisava que “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”. E como já nos alertava Angela Davis, “a liberdade é uma luta constante”. Estejamos atentas!